A depressão como sintoma da vida moderna
Escrito por José Carlos Ferrigno(*)- tamanho da fonte
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O tema da depressão nunca esteve tão em voga. Artigos, entrevistas, reportagens, documentários, surgem com frequência na mídia. O expressivo avanço nas pesquisas das neurociências subsidia o refinamento de fármacos que agem no cérebro corrigindo a ação dos chamados neurotransmissores, sobretudo a serotonina, responsável pelo nosso humor.
Em sua coluna na Folha de S.Paulo de 26/08/2014, Mirian Goldenberg comenta a fala de uma senhora de 52 anos sobre sua tristeza e a decorrente incompreensão da família e dos amigos. Tanto a colunista quanto a depoente falam em tristeza. Apenas em um momento essa senhora menciona o termo “depressão”. É importante estabelecer uma diferença entre um momento triste de nossas vidas e um estado depressivo. No segundo caso, entende-se sem dificuldade que nos referimos a uma condição, se não permanente, sem dúvida, ao menos duradoura. De qualquer modo, tanto a tristeza quanto a depressão são pouco toleradas não só por familiares e amigos, mas pela sociedade em geral.
O tema da depressão nunca esteve tão em voga. Artigos, entrevistas, reportagens, documentários, surgem com frequência na mídia. O expressivo avanço nas pesquisas das neurociências subsidia o refinamento de fármacos que agem no cérebro corrigindo a ação dos chamados neurotransmissores, sobretudo a serotonina, responsável pelo nosso humor.
Todavia, mesmo se considerarmos a importante descoberta dos efeitos deletérios do desequilíbrio químico cerebral, é inevitável que nos perguntemos: os valores éticos que regem nossa vida social nos tornam mais fortes ou mais frágeis para lidar com as adversidades da vida?
Zygmunt Bauman com seu olhar aguçado e sua experiência de 89 anos de vida nos fala da fragilidade dos laços sociais como uma característica desta nossa sociedade de relações voláteis. Nela prevalece o receio da entrega e do compromisso com o outro, em nome de uma pseudoliberdade de escolhas que, na verdade, se resume ao que consumir. Nesse contexto de desconfiança, competição e individualismo, os laços afetivos são frouxos. E são frouxos justamente para que possam ser mais facilmente desatados, no jogo rápido do gozo breve e do imediato descarte para o prosseguimento do frenesi consumista.
O distanciamento que a sociedade de massas produziu entre as pessoas é analisado por Hannah Arendt em A Condição Humana que nos diz: “O que torna tão difícil suportar na sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras”. Para ela, a sociedade de massas provocou o empobrecimento do espaço público, o desvanecimento da política, em favor do econômico representado pelo consumismo e pela acumulação de riquezas. Considera ainda que hoje há uma exacerbação da necessidade da admiração pública alimentada pela vaidade, além da ilusão de que o dinheiro representa a satisfação de todas as necessidades humanas.
Vários autores discutem a aceleração do tempo, a pressa, a vida agitada, o acúmulo de obrigações que assolam o homem contemporâneo. Em Sinal Fechado, música dos anos 70 de Paulinho da Viola e Toquinho, há um encontro rápido e casual de dois amigos em um semáforo. Eles assim dialogam: Olá, como vai? Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro, e você? Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios. Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
Desde a Revolução Industrial, segundo Maria Rita Khel, a impressão que se tem, é que o tempo em sua dimensão cronológica vem se acelerando de uma forma exasperante. Quanto mais tentamos aproveitar o tempo, quanto mais dispomos das horas e dos dias segundo a convicção de que o ‘tempo é dinheiro’, mais sofremos do sentimento de desperdiçar a vida. Antonio Candido completa: o capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro, isso é uma monstruosidade, o tempo é o tecido da nossa vida. E de um autor que desconheço: Tempo não é dinheiro. Dinheiro perdido, você pode ir recuperando com o tempo. Tempo perdido você nunca vai recuperar de modo algum. Nem com dinheiro.
Em nossa época de exacerbado individualismo, como fica o cuidado ao outro? Mas, não só a outras pessoas. Como fica o cuidado com a natureza, com a coisa pública, com a educação, com a saúde? E como fica o autocuidado? Numa época de valores individualistas, o próprio exibicionismo também é punido e algumas armadilhas são armadas. Por exemplo, a confusão de espaço público e espaço privado têm ocasionado destrutivas exposições de pessoas incautas, invadidas em sua privacidade, principalmente nas redes sociais. Hannah Arendt nos adverte: há plantas que vão bem ao sol e outras que só se desenvolvem à sombra. Ou seja, certos assuntos devem ser privados, outros públicos.
Na sociedade do espetáculo, sugestivo título da obra de Guy Debord, os altos índices de depressão nos dias de hoje fazem dela um dos principais sintomas do mal estar contemporâneo. Frente à obrigação do gozo e à proibição de manifestar tristeza, o depressivo “bate em retirada” enquanto é acossado pela “medicalização salvadora” do Prozac, do Zoloft, do Cipramil, do Cipram ou do Procimax. Segundo o saudoso poeta e compositor Torquato Neto, o depressivo incomoda porque “desafina o coro dos contentes”, por isso ele é um importante sintoma de que algo não vai bem no modo como vivemos.
Lembrando que a pessoa triste de quem falamos no início, já é uma senhora, surge outra questão: como é envelhecer na sociedade atual? Para muitos não tem sido tarefa fácil, considerando-se os valores cultuados. A depressão na velhice é frequente, em decorrência do abatimento pelo não cumprimento das expectativas de sucesso preconizadas pelo sistema.
Nada contra o incentivo ao chamado envelhecimento ativo recomendado pela ONU. Mas especialistas como Harry Mood e Guita Debert e outros da Gerontologia Crítica alertam para a privatização da velhice e a consequente isenção do Estado nessa gigantesca onda neoliberal que nos assola. Prevalece em nossos dias uma responsabilização do indivíduo e de sua família pelo fracasso ou pelo sucesso nessa fase da vida. Mas, sabemos que as oportunidades de preparação para uma boa velhice não são as mesmas para todos, sobretudo em um país tão contrastante e desigual como o nosso.
Não é um caminho fácil, mas é possível com muito empenho reverter a atual condição de alienação humana preparando as próximas gerações com os valores da solidariedade e da participação política. Há esperança, mas a mudança depende de todos nós, velhos e jovens.
(*)José Carlos Ferrigno é doutor em Psicologia, gerontólogo e especialista em relações intergeracionais. Faz parte da Rede de Colaboradores do Portal do Envelhecimento. Email: jcferrigno@gmail.com
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