sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Médico sueco conta como se tornou o primeiro tetraplégico a ter um filho




Em 15 junho de 1984, um mergulho mudou definitivamente a vida do sueco Claes Hulting, 58 anos. Ao cair na água, ele bateu a cabeça contra o concreto de uma obra que estava encoberta pela maré. Seu pescoço foi partido na altura da sexta vértebra cervical, o que o deixou tetraplégico.
Hulting era um anestesiologista de 30 anos com casamento marcado para dali a duas semanas. Só não morreu afogado aquele dia porque amigos o resgataram. Foi transportado no mesmo helicóptero em que costumava prestar socorro a vítimas de acidentes e levado ao hospital onde trabalhava. Devido à sua profissão, sabia exatamente o que tinha ocorrido. Ele e sua mulher, Barbro Fogström, também médica, tinham plena consciência dos danos causados pelo choque com a cabeça, e decidiram manter o casamento, cuja cerimônia foi realizada no dia planejado — no hospital.
O acidente representou também uma guinada profissional. Meses depois, de volta ao trabalho, percebeu que não poderia continuar como antes. “Eu precisava me dedicar a pacientes com lesão medular”, lembra. Foi, então, trabalhar em um centro de reabilitação na Austrália e visitou projetos em outros países, até retornar à Suécia com a ideia de fundar um centro de apoio modelo para paraplégicos e tetraplégicos.
Seu objetivo se tornou realidade em 1991, quando a Fundação Spinalis foi aberta em Estocolmo, graças, principalmente, a doações. A instituição já atendeu 1,2 mil pacientes com lesão medular. Eles passam por um programa de três meses e depois fazem visitas periódicas para acompanhamento. “Nós os ensinamos a dirigir, se vestir, ir ao banheiro, fazer sexo, mas, principalmente, os encorajamos a seguir com suas vidas”, descreve. Dos cerca de 140 funcionários da Spinalis, 22 são cadeirantes, que servem de modelo para os pacientes.
O maior exemplo que essas pessoas podem ter, no entanto, parece ser o próprio Hulting. O médico parece ignorar os limites e persegue objetivos com determinação ímpar. Hoje, ele é autor de estudos sobre a saúde de pessoas com paralisia, tem livros publicados (incluindo um sobre culinária, com receitas saudáveis e simples, que podem ser preparadas por seus pacientes) e nunca parou de praticar esportes — sua página no Facebook exibe uma foto dele em uma bicicleta movida com os braços.
Seu maior feito, porém, chama-se Emil, seu filho de 19 anos. Hulting foi o primeiro homem tetraplégico do mundo a se tornar pai, graças a um método que ele mesmo desenvolveu. Foi sobre essas conquistas, sua história e a saúde de pessoas com lesão medular que o médico conversou por pouco mais de uma hora com o Correio, ao visitar Brasília na semana passada, integrando uma comitiva sueca de políticos e empresários que esteve no Brasil.
Como foram os dias após o acidente que o deixou tetraplégico?
Muito difíceis. Eu e minha mulher decidimos manter o casamento, mas muitos foram contra. O CEO do hospital onde eu trabalhava chegou a ligar para meus pais sugerindo que eles me impedissem de me casar. Eu estava intacto do ponto de vista cognitivo, então ele não tinha o direito de fazer tal coisa. Eu poderia ter processado ele, mas não pensei nisso aquela hora. O momento mais importante, porém, aconteceu uma semana depois do casamento. Fazia três semanas que eu tinha sofrido o acidente e chegaram os feriados de verão. Eu queria viajar, mas o hospital não queria me liberar. Como eles não podiam me manter preso, pedi para que amigos com quem eu trabalhava me transportassem de helicóptero até o local onde minha família estaria naquela semana. Foi a viagem mais importante da minha vida, porque finalmente eu senti o peso do que tinha ocorrido. Eu chorei, chorei e chorei. E isso foi muito importante para processar minha dor. Hoje, os médicos receitam pílulas para as pessoas e não as deixam passar por esse processo, mas ele é necessário.
Qual é a abordagem de tratamento feita na Fundação Spinalis, que o senhor fundou?
Hoje, nós temos 40 leitos e já atendemos 1,2 mil pacientes. As pessoas que atendemos fazem primeiro um programa de três meses, em que ficam morando ali. Buscamos ter os melhores profissionais para ensiná-los a retomar suas vidas. Nós os ensinamos a como dirigir, se vestir, ir ao banheiro, fazer sexo, mas, principalmente, os encorajamos a seguir com suas vidas. Dos nossos funcionários, 15% são cadeirantes, e eles acabam servindo de modelo para quem está participando de nosso programa. Depois, os pacientes podem voltar sempre que precisam de ajuda e recomendamos que venham pelo menos uma vez por ano para uma avaliação.
Como encorajar essas pessoas que acabaram de sofrer um grande trauma?
No passado, as abordagens para pacientes com lesão medular focavam principalmente o corpo, os danos físicos. Depois, passamos a nos preocupar com o ambiente, se ele é inclusivo, se os lugares são acessíveis. Hoje, sabemos que é importante nos preocuparmos também com os obstáculos mentais que se criam nesses pacientes. Eles se perguntam: “Será que vou conseguir?”. Precisamos ajudá-los a acreditar que sim, encontrar o que os deixará motivados. Eu não acredito que alguém possa reabilitar outra pessoa. É ela que precisa se reabilitar.
Qual é a maior dificuldade para uma pessoa que acaba de sofrer uma lesão na medula?
É alcançar autonomia, o que exige trabalho. Veja, até hoje eu levo cerca de uma hora e meia entre acordar e terminar de me vestir, incluindo ir ao banheiro, me barbear… Apenas para vestir as meias são cinco minutos, dois minutos e meio para o pé esquerdo e dois minutos e meio para o pé direito. E não há como ser diferente. Eu tenho de saber que será assim e me planejar. É preciso paciência e resistência, mas eu tenho autonomia. No meu dia a dia, consigo realizar sozinho todas as tarefas que preciso cumprir. Se posso ter ajuda, claro que aceito, sem problemas, mas é importante conquistar independência.
Quais outros problemas são mais comuns?
A dor neuropática e a incontinência são problemas para grande parte dos pacientes. Essa dor é diferente da que você sentirá se eu bater em seu braço. Ela é originada no sistema nervoso e é difícil conviver com ela (a manifestação da dor pode dar a sensação de queimação, peso, agulhadas, ferroadas ou choques). O controle da urina e das fezes também é um desafio. Por exemplo, há dois anos, durante uma vigem de avião, defequei em minhas calças. É uma situação constrangedora, que pode ser emocionalmente muito desgastante. E a pessoa precisa estar preparada para lidar com eventos assim.
Chama a atenção como o senhor fala de forma natural sobre assuntos que causam constrangimento nas pessoas.
É assim que devemos abordar esses assuntos, de maneira direta, sem escondê-los.
Como o senhor conseguiu ter um filho?
Estudei muito sobre sexualidade porque, quando sofri o acidente, foi dito para mim que eu não poderia ser pai. Para as mulheres (com lesão medular) não há problema. Elas podem engravidar normalmente. Para os homens, o problema era o acesso ao esperma. A produção de sêmen não se altera e, principalmente depois do viagra, ter uma ereção também não é problema para a grande maioria dos pacientes.
Os homens com lesão medular, porém, não têm orgasmo. Cerca de 50% das mulheres têm, mas os homens, não. O que descobrimos foi que, com a ajuda de vibradores, é possível provocar o reflexo da ejaculação. Eu comecei esses estudos e desenvolvi um vibrador, o Ferticare, que ajuda esses pacientes a ejacular e, assim, poder engravidar suas mulheres. Ele é um pouco diferentes dos vibradores convencionais porque pode variar a amplitude e a frequência.
Demorou para a sua mulher engravidar?
Passamos sete anos tentando. Comprei todos os vibradores que encontrei para testá-los em mim mesmo. Hoje, a técnica pode beneficiar 85% dos homens com a medula lesionada. Assim como você, esses pacientes conseguem pressentir que a ejaculação está próxima. Então, com o viagra, garantimos uma ereção satisfatória e fazer o estímulo com o vibrador. Quando o homem sente que está perto de ejacular, pode deixar o vibrador de lado e iniciar a relação com sua parceira, ejaculando dentro dela.
Mesmo sem orgasmo, sexo continua sendo importante para os homens?
Sim. Ele não sentirá o prazer do orgasmo que sentia antes, mas notamos que, simbolicamente, é muito importante, tanto para o homem quanto para sua parceira, ter uma relação sexual com penetração. Por isso, estimulamos a prática.
O que o senhor veio fazer no Brasil?
Vim conhecer melhor o programa de acessibilidade do governo brasileiro. Nosso embaixador no Brasil (Magnus Robach) achou que seria interessante me apresentar às autoridades brasileiras relacionadas a essa iniciativa. Eu me encontrei com sua ministra dos Direitos Humanos (secretária Maria do Rosário) e ela me convidou para vir à Copa do Mundo em 2014. Eu disse que virei, e ela me garantiu que todos os estádios serão acessíveis. Também vim ver se consigo abrir portas a empresas suecas que desenvolvem ótimos produtos para cadeirantes, especialmente cadeiras de rodas e cateteres, que, quando de qualidade, diminuem o risco de infecção urinária, outro problema muito comum em paraplégicos e tetraplégicos.
O senhor mencionou a Copa do Mundo no Brasil. O senhor sabe dos planos do neurocientista Miguel Nicolelis de fazer uma criança tetraplégica dar o ponta pé inicial do evento usando um exoesqueleto conectado ao cérebro? O que o senhor acha de pesquisas assim?
Eu não gosto, porque elas podem dar a sensação de que a cura está próxima, que os pacientes devem esperar por ela. Claro que avanços tecnológicos são muito importantes para nós, mas, há 28 anos, quando sofri o acidente, diziam para mim que a cura estava logo ali na esquina, mas não chegamos à esquina até hoje. A promessa da cura faz com que as pessoas fiquem em casa esperando por ela, presas ao computador, bebendo cerveja. No entanto, o que elas precisam é sair, aprender a viver novamente, conquistar sua independência.

Fonte: http://serlesado.com.br/medico-sueco-conta-como-se-tornou-o-primeiro-tetraplegico-a-ter-um-filho/


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