Por Luiz Carlos Garrocho
no Cultura do Brincar
Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano é o título de um
livro maravilhoso cujos autores são Humberto Maturana e Gerda
Verden-Zöller. O primeiro, o biólogo chileno que, juntamente com
Francisco Varella, conribuiu para modificar conceitos sobre a conexão
corpo, mundo e conhecimento. Ela, psicóloga alemã, membro do Centro
Bávaro de Pesquisa Educacional do Instituto Estatal para a Educação na
Primeira Infância e fundadora do Instituto de Pesquisa de Ecopsicologia
da Primeira Infância de Passau, na Bavária.
Na Introdução, os autores defendem a idéia de que a linguagem surgiu,
na história da espécie humana, entrelaçada com o emocionar. Mais do que
linguagem como representação, eles abordam a conversação: uma
“convivência consensual em coordenações de ações e emoções”. Partem do
pressuposto de que a emoção é que define a ação. Assim, Maturana e
Verden-Zöller tomam o ato valorativo como algo que precede a dimensão do
necessário. O desejo, portanto, desempenha em nós, papel fundamental.
Não dá para pensar uma realidade que se imponha sem o intercurso
desejante. E não é o que o brincar faz o tempo todo?
A obra divide-se em três grandes capítulos: Conversações matrísticas e
patriarcais, por Humerto Maturana, O brincar na relação
materno-infantil (fundamentos biológicos da consciência de si mesmo e da
consciência social), por Gerda Verden-Zoller, O brincar: caminho
desenhado, por Gerda e Maturana. E por fim, o epílogo e um glossário.
A obra é um alento diante da predominância, na eduação infantil, de
projetos extração cognitivista, na qual o lúdico tem desempenhado o
papel de mero suporte para a aquisição de competências como ler,
escrever e contar.
O livro discute as relações entre o amar e o brincar, trabalhando as
linhas que caracterizam as culturas patriarcais e matriarcais,
considerando-se a dominação histórica das primeiras sobre as outras. A
corporeidade, na perspectiva do brincar e do emocionar, assume sua
importância não só para a educação infantil mas também para uma ecologia
humana.
Certa vez, convidado a discutir com educadores um projeto de educação
infantil que envolvia a introdução de conhecimentos de modo
interdisciplinar, porém, com grande carga intelectual, procurei ponderar
sobre a necessidade de deixar as crianças pequenas brincarem mais,
adiando a formalização para mais adiante. Uma das coordenadoras do
encontro chamou-me num canto e disse: – Vi o seu sofrimento quando a
tendência é sobrecarregar a criança pequena de estudos, deixando quase
nenhum espaço para que ela brinque! De fato, era isso mesmo. A
influência cognitivista trouxe para a primeira infância toda uma carga
de cientificismo que não deixa de ser, também, um saber dominante. Não
se trata, entretanto, de avogar o irracionalismo, que é, na verdade, o
complemento do racionalismo. Porém, há saberes que não são considerados
valores fundamentais para uma sociedade como a nossa.
Em muitos projetos de educação infantil há uma desconfiança, por
vezes sutil, em relação à vida do corpo em sua agitação molecular. Na
perspectiva de Maturana e Verden-Zöller, pouco espaços para os momentos
em que pode se dar o entrelaçamento da linguagem com o emocionar. Por
decorrência, o brincar só pode ter um lugar secundário: é sempre
instrumento para outra coisa. Alguns desses projetos para a primeira
infância querem, de um jeito ou de outro, formar pequenos intelectuais
críticos e esquecem que, primeiramente, somos corpo.
Nesse aspecto, cito o interessante texto de Maria Isabel Brandão de
Souza Mendes e Teresinha Petrúcia da Nóbrega, intitulado Corpo, Natureza
e Cultura: contribuições para a educação. As autoras abordam,
principalmente, as idéias de Maturana, Varella e Merleau-Ponty sobre o
conhecimento, o corpo e o mundo. Defendem a primazia do corpo sobre os
conceitos de representação (mental, principalemente). Trata-se de um
corpo-ação, pois
“considera-se que na própria ação já há cognição, tendo em vista que a
aprendizagem emerge do corpo a partir das suas relações com o entorno.
Essa concepção de aprendizagem problematiza, portanto, a concepção
intelectualista pautada nos pressupostos racionalistas da modernidade, a
qual concebe o corpo e os sentidos como instrumentos no processo de
conhecimento, ou então como responsáveis por enganos, por erros, sendo
então descartados ou considerados acessórios no processo de construção
do conhecimento.”
A recuperação do corpo que brinca nos projetos educacionais pode ser
reivindicada, principalmente, quando temos em vista a primeira infância.
O livro de Maturana e Verden-Zöller potencializa essa perspectiva, na
qual a gestualidade e toda a gama de vivência corporal são reconhecidas
como modos de conhecimento válidos por si mesmos. Diria que são outras
ciências – outras modalidades de saber. A convivência do diferente, a
aceitação da diversidade no mundo atual, a retomada da corporeidade,
tais são os temas que se colocam, portanto, em pauta.
Referências:
MATURANA, Humberto R. e VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar:
fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotii e Lia
Diskin. São Paulo, Palas Atenas, 2004.
Fonte
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