terça-feira, 14 de agosto de 2012

Educação e trabalho como direitos humanos e a necessidade de políticas públicas articuladas

Por Liliane Garcez e Luiz Henrique de Paula Conceição

Introdução
O modo pelo qual são organizadas políticas públicas ao longo da história pode ser definido como respostas ético-políticas às demandas sociais nos diferentes contextos. Suas prioridades são oriundas da sociedade que se organiza continuamente no intuito de que seus pleitos ganhem espaço nas agendas governamentais, uma vez que, para sua efetivação são necessários investimentos sociais, políticos e econômicos. Conservar e transformar são, pois, ações que compõe o movimento das políticas públicas. Direitos humanos são direitos positivos, históricos e culturais que encontram fundamento e conteúdo nas relações sociais materiais presentes em cada momento histórico. Ao situar Educação e o Trabalho como direitos humanos admite-se sua interdependência e importância estratégica para o desenvolvimento sustentável e inclusivo da sociedade, o que implica no estabelecimento de políticas públicas que estabeleçam ações integradas envolvendo a transmissão de conhecimentos e valores e a formação para o trabalho 2, tal como constante na Constituição Federal.

Educação e Trabalho e as pessoas com deficiência
As políticas públicas, ao estabelecer suas ações e metas, têm como diretriz atuar no combate a qualquer desigualdade, exclusão ou restrição feita com o propósito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, desfrute ou exercício dos direitos, em igualdade de condições, valorizando e estimulando o protagonismo e as escolhas de cada uma das pessoas. Reconhecimento e participação sustentam a noção de políticas públicas na perspectiva da inclusão social, pois pertencer a uma comunidade e estar incluído socialmente é direito de todas as pessoas. Assim, o acesso e permanência à educação e ao trabalho é direito de tod@s, sem discriminação, em igualdade de oportunidades.
Em relação às pessoas com deficiência, é necessário estabelecer medidas apropriadas para assegurar apoio e não permitir que haja discriminação baseada nas condições físicas, intelectuais, mentais ou sensoriais e, muito menos, afastamento compulsório de suas comunidades. Nesse aspecto, alterar as leis é a parte imprescindível do processo de provocação e sustentação das mudanças, mas não pode ser entendido como suficiente ou um fim em si mesmo. Como afirma Norberto Bobbio, as leis por vezes afirmam os direitos que se gostaria de ter.
Nesse sentido, alterar o tempo de oferta de ensino compulsório na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) é condição para diminuir as desigualdades educacionais. Isoladamente, porém, não é suficiente para que o acesso à educação seja pleno para todas as crianças e adolescentes brasileir@s. Para assegurar um sistema educacional inclusivo de acordo com a meta de inclusão plena, tal como disposto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006)3 em seu artigo 24 que se refere especificamente à educação, é imprescindível que sejam efetivadas medidas de apoio individualizadas em ambientes catalisadores do desenvolvimento acadêmico e social.
Em termos do direito ao trabalho, dado que a inserção laboral integra o conjunto de direitos previstos na Constituição Brasileira, tem-se a promulgação da Lei de Cotas (Lei 8213/1991) que estabelece o percentual de empregados com deficiência que a empresa com mais de cem empregados tem de manter nos seus postos de trabalho (de 2 a 5 % dependendo do tamanho da empresa) e o Decreto nº 3.048/1999, republicado em 12/05/1999, que regulamenta a Lei de Cotas, possibilitando um cenário de inclusão socioeconômica promissor.
O artigo 27 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) é relativo ao trabalho e emprego. Ele afirma o direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência.
Não obstante, as empresas brasileiras relatam dificuldade em cumprir a referida legislação, principalmente por conta da falta de qualificação d@s trabalhador@s. Sem entrar no mérito da questão, está posta a necessidade de aprimorar, criar, ampliar, efetivar políticas públicas voltadas à qualificação cujo objetivo para equiparar oportunidades de trabalho, contribuindo para aumentar a empregabilidade desse grupo que tem sido historicamente invisível. Pode-se notar que algumas políticas que vem sendo implementadas pelos Ministérios do Trabalho e Emprego (MTE) e da Educação (MEC) tem esse foco, por exemplo, ao estabelecerem diretrizes de ação para aumento da participação das pessoas com deficiência nos cursos ofertados em parceria com estados, municípios e a União visam ampliar o acesso dessa parcela da população ao mercado de trabalho.

A hora de sair das caixinhas: a importância das políticas públicas intersetoriais
As demandas sociais por educação e trabalho na perspectiva da inclusão social instigam os gestores públicos a reorganizarem o próprio formato das políticas públicas, quer em termos de concepção, quer em termos de execução. O desafio colocado frente à organização tradicional do governo e das instituições sociais que, de forma geral, têm privilegiado o trabalho ‘em caixinhas’ não é mais suficiente. A interdependência dos direitos humanos demanda articulação intersetorial e, consequentemente, investimento de estrutura institucional baseada no diálogo rotineiro e sistemático entre as diversas pastas que compõe o poder executivo, induzindo a construção e o uso de “ferramentas para a mudança”, em direção a um modelo de crescimento sustentável ambiental, econômica e socialmente para, de fato, responder às questões no grau de especialização e complexidade em que se apresentam.
Algumas ações que estão organizadas intersetorialmente já apresentam indicadores muito interessantes. O Programa BPC na Escola é um desses exemplos. Ação interministerial que envolve o Ministério da Educação (MEC), o Ministério da Saúde (MS), o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS) e a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e seus correlatos em estados e municípios está voltada a crianças e adolescentes com deficiência (0 a 18 anos) que recebem o Benefício de Prestação Continuada – BPC. Teve início em 2007, quando foi realizado o primeiro levantamento da situação escolar de crianças e adolescentes que recebiam o BPC por meio do qual se constatou que aproximadamente 70% destas estavam fora da escola. Diante desses dados, foram realizadas buscas ativas a esses beneficiários, cerca de 219 mil visitas domiciliares, para diagnosticar as razões dessa exclusão. O resultado é que, atualmente, a porcentagem de crianças e adolescentes com deficiência beneficiários do BPC que estão na escola aumentou para 68,71%. Ou seja, houve uma inversão da curva!
No que se refere a inserção no mercado de trabalho as estatísticas mostram que muitas pessoas em idade economicamente ativa não possuem qualificação profissional e/ou não terminaram seu processo de escolarização básica.  Novamente, por meio dos dados do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC) as pessoas com deficiência que se encontravam em situação considerada de “incapacidade para a vida independente e para o trabalho”, em virtude da falta de condições para o enfrentamento das inúmeras barreiras existentes e da insuficiência de políticas públicas de apoio aos processos de habilitação, reabilitação, educação e inclusão social foram identificadas como público prioritário. Desde então, foram promovidas muitas alterações na legislação referente à concessão e manutenção do BPC. Uma dessas mudanças assegura o retorno garantido do recebimento do BPC ao beneficiário que teve o beneficio suspenso mediante entrada no mercado de trabalho e que, posteriormente, perdeu o emprego. (Lei nº 12.470/2011 e Decreto nº 7.617/2011). Neste caso, a pessoa pode voltar a receber o BPC sem a realização de perícia médica ou reavaliação da deficiência, respeitado o período de dois anos. Nos mesmos moldes do Programa BPC Escola, no ano de 2012, foi criado o Programa BPC Trabalho para atender prioritariamente beneficiários com idade entre 16 e 45 anos, que têm interesse em trabalhar e encontram dificuldades para qualificação e inserção profissional. Suas estratégias envolvem sensibilização, avaliação do interesse e das necessidades para a qualificação profissional e o trabalho.
Cabe ressaltar ainda o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que tem como objetivo principal expandir e democratizar a Educação Profissional e Tecnológica no país. Uma das ações do programa é a Bolsa-Formação, que oferece Cursos Técnicos e de Formação Inicial e Continuada (FIC), também conhecidos como cursos de qualificação profissional. Esses cursos são presenciais e serão realizados pela Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, por escolas estaduais e por unidades de serviços nacionais de aprendizagem como o SENAC, o SENAI e o SENAR. As secretarias municipais e/ou estaduais de educação, assistência social, o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e o SINE (Sistema Nacional de Emprego) são responsáveis pela mobilização e divulgação dos cursos nas comunidades para viabilizar o preenchimento total das vagas, forjando seu caráter intersetorial. É importante registrar que essas ações, entre várias outras, integram o Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Viver sem Limite lançado no final de 2011.

Algumas considerações
Ao definir-se inclusão não como o reverso da exclusão e sim como o processo de modificação da organização social para ampliar a capacidade de respostas eficazes a todas e a cada pessoa, opta-se pela criação de alternativas para a quebra das barreiras historicamente construídas.
Em relação às pessoas com deficiência, à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) e dos fundamentos dos direitos humanos, inclusão conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, pois, ao valorizar as diferenças humanas, denuncia a discriminação e a invisibilidade, ‘provocando’ a efetivação de ações que objetivem a retirada de barreiras que impedem a participação plena desse grupo por fomentar a promoção da acessibilidade a tod@s, e não apenas de parcelas da população. As estratégias estabelecidas estão baseadas na noção de ‘isso e aquilo’ em substituição à ideia de ‘ou isso ou aquilo’, pois, quando se relaciona aos direitos fundamentais o ‘ou’, por implicar em escolha, exclui, separa, encaminha, desresponsabiliza parcialmente.
Assim, ao apreender-se inclusão como processo de modificação da organização social para torná-la responsiva e adequada a tod@ e cada brasileir@, amplia-se o espectro de ação para diferentes propostas a serem continuamente resignificadas, no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável e inclusivo, cuja responsabilidade é compartilhada entre tod@s. Esta perspectiva impõe a necessidade de nos colocarmos em movimento, de rever cotidianamente posturas, criar e recriar instrumentos para romper com as barreiras que se estabeleceram e se estabelecem, e, valorizar, sobretudo, as diferenças para que todo@s, sem exceção, sejam membros importantes e responsáveis que têm o direito de realizarem seus projetos na comunidade em que vivem. Sem vírgulas ou “desde que”.

Notas
1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (grifos nossos)
2 Essa expressão encontra-se no item IV do artigo 214 da Constituição brasileira que trata do plano nacional de educação. No primeiro Plano Nacional de Educação após a promulgação da Constituição de 1988, lei no. 10.172/2001 tal expressão fica restrita ao capítulo referente à educação tecnológica.
3 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 6 de dezembro de 2006. Diferentemente das Declarações Internacionais anteriores, no dia 09 de julho de 2008, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada com quórum qualificado, ou seja, aprovada por 3/5 do Congresso Nacional, tornando-se o primeiro tratado internacional com status constitucional da história do Brasil – o Decreto Legislativo 186/08. Além disso, no ano seguinte, o Decreto Executivo 6949/09 de mesmo teor, foi assinado pelo Presidente da República, para não deixar ‘brechas’ legais, uma vez que esse dispositivo constitucional havia sido utilizado pela primeira vez. Pode-se afirmar que tanto a elaboração da Convenção pela Organização das Nações Unidas, bem como o processo de ratificação no Brasil e nos demais países foram frutos dos movimentos sociais que pressionaram os governos com suas demandas baseadas nos direitos humanos e conseguiram o estabelecimento desses marcos legais.

Sobre os autores
Liliane Garcez é mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, Licenciada em Psicologia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, Psicóloga pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP, Administradora Pública pela Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas – EAESP/FGV
Luiz Henrique de Paula Conceição é graduado em Psicologia (USP) e mestrando em Psicologia (USP). Atua no Instituto Rodrigo Mendes como pesquisador.
 

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