Um mundo fragmentado e difícil de decifrar é o que as crianças autistas enfrentam. O transtorno de desenvolvimento, que atinge cerca de uma em cem crianças, é o tema do novo livro da psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva. Conhecida pela série de livros cujos nomes começam por “Mentes” (“perigosas”, “ansiosas”, entre outros), ela lança agora “Mundo Singular”, em parceria com o também psiquiatra Leandro Thadeu Reveles e a psicóloga Mayra Bonifacio Gaiato (Editora Fontanar, 296 págs., R$ 39,90). Com capítulos permeados por casos reais que passaram pela equipe da psiquiatra, o livro traz o didatismo de praxe nas obras de Ana Beatriz. Esclarecer o público quanto às grandes variações que existem dentro do espectro do autismo é um dos objetivos dela. “Essas crianças ainda são vistas como débeis mentais, como limitadas. Isso é um grande erro.”
Entrevista
Qual é a reação dos pais ao saberem que o filho tem autismo?
É um momento de desespero, de luto, não por aquela criança que nasceu, mas pela que eles esperavam que ia nascer. É preciso ter cuidado com promessas de cura. O que podemos oferecer são estratégias com embasamento científico, viver juntos as tristezas e comemorar os avanços.
Como está a detecção do problema no país?
O diagnóstico no Brasil é pouco realizado. As crianças com autismo ainda são tidas como débeis mentais e ponto, com limites intelectuais e retardo mental mesmo. Isso é um grande erro. O autismo é um transtorno do desenvolvimento do sistema nervoso que traz uma gama de comportamentos diferenciados. Por isso falamos do espectro autista, que vai desde casos leves até os muito graves.
Como se define o transtorno biologicamente?
Essa criança nasce com um sistema nervoso central diferente, e essa diferença é na comunicação entre os neurônios, que é mais lenta e acontece menos. Por isso ela vê o mundo em partes, e não como algo global. Se você olha para o meu rosto, vê nariz, olhos, boca e já sabe: é a Bia. É muito rápido. O autista vê nariz, orelha e vai se prendendo nos detalhes. Isso causa dificuldades de socialização.
Mas essas crianças têm muito afeto, diferentemente do que se pensa. Por muito tempo, o autismo foi chamado de psicopatia infantil, porque a dificuldade de socialização parece uma indiferença com o outro, e não é.
Quais as estratégias para melhorar esses relacionamentos?
O autista tem pensamento concreto, você precisa criar manuais para ele. É preciso treinar o cérebro para abrir conexões que ele não tem. A medicação é usada para que a criança fique menos hiperativa e mais atenta a esses ensinamentos.
A maior descoberta na neurociência nos últimos 20 anos é a neuroplasticidade, a gente muda o cérebro de dentro para fora e de fora para dentro. Os autistas têm o sistema emocional funcionante. Mas levam um tempo maior para manifestar a emoção.
E nos casos mais graves também há dificuldades de linguagem. Por isso é comum que crianças com graus mais severos de autismo usem as pessoas como instrumento: ela pega você e leva até a geladeira para pegar o que quer.
Por que muitos autistas são tão dependentes de rituais?
O mundo é um excesso de estímulos para eles. Se o autista domina algo, como o caminho da casa até a escola, isso é ótimo para ele. Se você mudar alguma coisa, causa desespero. Qualquer mudança deve ser negociada.
Boa parte dos autistas é muito inteligente, muitos se alfabetizam sozinhos. Eles estudam e vão a fundo nos assuntos. E 10% são savants, têm uma ilha de conhecimento extraordinário cercada por um mundo de deficiências. São aquelas criaturas que tocam piano sem nunca ter tido aula, mas não conseguem trocar a roupa sozinha. Um autista é incapaz de mentir e de entender ironias. Por isso eles gostam de bichos, porque eles têm poucas expressões muito simples.
Por que é tão importante detectar o problema cedo?
O diagnóstico feito até os três anos é um divisor entre uma vida funcional, que não vai ser perfeita, mas em que a pessoa vai poder se cuidar, ter uma articulação com as pessoas, e uma vida em que isso não acontece. Pediatras bem informados podem detectar o problema facilmente.
Bebê que se incomoda em ser amamentado é um sinal, assim como demorar para falar, não olhar para os pais quando falam, andar na ponta dos pés se está nervoso, não olhar nos olhos. Tudo isso é muito precoce. Um investimento nos pediatras traria diagnóstico em 100% dos casos antes dos dois anos, o que seria revolucionário para o prognóstico das crianças.
Os autistas são estrangeiros onde quer que estejam. Nosso mundo para eles é assustador. Mas nós podemos buscá-los. Quem trata esse tipo de alteração precisa gostar muito de gente. É preciso exercitar a solidariedade.
E isso faz bem para todos. Para mim, faz. Cada beijo que ganho de um autista é um grande troféu.
O QUE FAZER SE SEU FILHO TEM AUTISMO
1. Informe-se
Fontes confiáveis de informação são sites de ONGs como a brasileira Autismo e Realidade (WWW.autismoerealidade.org) e a americana Autism Speaks (WWW.autismspeaks.org)
2. Estimule o autocuidado
É importante incentivar a criança a tomar banho, trocar-se e se alimentar sozinha, para ter mais independência.
3. Dê tarefas a ele
Peça ao seu filho que ajude em tarefas domésticas. Divida uma tarefa grande, como arrumar o quarto ou pôr a mesa, em ações pequenas. Assim, elel pode fazer uma coisa de cada vez.
4. Faça refeição em família
É importante reunir a família para trocar experiências ocorridas durante o dia e estimular a convivência. Para essa atividade, que deve ocorrer ao menos uma vez por dia, a refeição é uma boa hora.
5. Crie uma rede de contatos
Manter convivência com outras famílias com filhos autistas é bom para gerar troca de experiências.
6. Incentive a convivência social
Matricule seu filho em clubes e aulas onde ele possa exercer habilidades sociais. A família deve ajudar na integração.
7. Seja persistente
Em caso de dificuldade da criança na escola, insista, converse com os professores e procure novas abordagens que facilitem a compreensão.
Folha de São Paulo, 9 de junho de 2012.
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