Nós, a medicina e o que realmente importa no final
Escrito por Redação Portal
Avalie este item
(0 votos)
O livro “Mortais” é uma corajosa narrativa do médico Atul Gawande que reconhece os limites da ciência e sabe de que modo ela pode nos proporcionar não apenas uma boa vida, mas também um bom fim, a partir de uma pesquisa reveladora e de histórias comoventes tanto de pacientes quanto da própria família.
A medicina triunfou, transformou os perigos do parto, dos ferimentos e das doenças, antes atormentadores, em algo controlável. No entanto, no que diz respeito às inescapáveis realidades do envelhecimento e da morte, o que ela faz muitas vezes se contrapõe ao que deveria fazer.
Quando falam sobre a perspectiva da morte, médicos recorrem a falsas esperanças e a tratamentos que encurtam a vida em vez de trazer conforto. Por meio de uma pesquisa reveladora e de histórias comoventes tanto de pacientes quanto da própria família, Atul Gawande revela suas limitações. De maneira provocadora e honesta, Mortais (Editora Objetiva) reflete sobre o caminho que devemos percorrer para lidar sabiamente com a nossa própria finitude.
Afinal, como é que enfrentamos o envelhecimento das pessoas que amamos? Apesar de trabalhar há anos como cirurgião, Atul Gawande só percebeu que estava mal preparado para lidar com a morte quando foi confrontado com a decadência do seu pai. Estaria seu pai disposto a viver até onde fosse medicamente possível? Ou só enquanto tivesse qualidade de vida? E em casa ou numa ILPI? O que era realmente importante?
As respostas não lhe eram dadas por uma ciência cada vez mais desumanizada. A medicina, com todos os extraordinários progressos tecnológicos, vem se centrando cada vez mais em (apenas) manter os pacientes vivos. O coração falha? Há cirurgias, próteses e transplantes. O resto pouco importa. Na pior das hipóteses o paciente volta ao centro cirúrgico para nova intervenção.
Esquecida fica assim a vida nos intervalos das consultas e cirurgias. No entanto, conforme defende Gawande, devemos encarar a medicina como uma forma de prolongar a qualidade de vida. Existem geriatras, lares, hospitais, unidades de cuidados paliativos que oferecem aos pacientes dignidade, autoestima, autonomia. Provam que o fim pode ser (re)escrito de outra maneira – muito mais feliz.
“Mortais” é leitura obrigatória para quem envelhece ou testemunha a velhice. É um dos livros mais pessoal de Atul Gawande. Filosófico por vezes, comovente quase sempre, é a corajosa narrativa de um médico que conhece os limites da ciência, mas também o modo como ela nos pode servir melhor.
Quem é o autor
Atul Gawande é residente de cirurgia em um hospital de Boston e escritor contratado para assuntos de medicina da equipe da revista The New Yorker. É doutor em medicina formado pela Harvard Medical School e tem um diploma de mestrado em saúde pública da Harvard School of Public Health.
Leia um trecho do livro
Durante minha infância e adolescência, não testemunhei doenças graves ou as dificuldades da velhice. Meus pais, ambos médicos, eram saudáveis e gozavam de boa forma física. Eram imigrantes indianos criando minha irmã e eu na pequena cidade universitária de Athens, Ohio. Meus avós, portanto, estavam muito longe. A única pessoa idosa com quem eu encontrava com frequência era uma vizinha que me dava aulas de piano quando eu estava no ensino fundamental. Mais tarde, ela ficou doente e precisou se mudar, mas não me ocorreu me perguntar para onde ela fora e o que lhe acontecera. A experiência de uma velhice nos tempos modernos era algo totalmente fora da minha percepção.
Na faculdade, porém, comecei a namorar uma menina chamada Kathleen, que morava no mesmo alojamento que eu, e em 1985, em uma visita de fim de ano a sua cidade natal, Alexandria, na Virginia, conheci sua avó, Alice Hobson, que tinha 77 anos na época. Ela me pareceu ser uma pessoa animada e independente. Não tentava disfarçar a idade. Não pintava o cabelo e o usava repartido para um dos lados, no estilo da atriz Bette Davis. Suas mãos eram cobertas de manchas senis e a pele, enrugada. Usava blusas e vestidos simples, cuidadosamente passados, batom, e continuou a usar salto alto por muito mais tempo do que teria sido considerado aconselhável.
Mais tarde eu soube — acabei me casando com Kathleen — que Alice crescera em uma cidade rural na Pensilvânia, conhecida por suas fazendas de flores e cogumelos. Seu pai tinha uma fazenda de flores, na qual cultivava cravos, calêndulas e dálias em estufas que se estendiam por hectares. Alice e os irmãos foram os primeiros membros da família a frequentar a universidade. Na Universidade de Delaware, Alice conheceu Richmond Hobson, um estudante de Engenharia Civil. Em razão da Grande Depressão, só tiveram dinheiro suficiente para se casar seis anos após a formatura. Por causa do trabalho dele, nos primeiros anos de casamento, Alice e Rich se mudavam com frequência. Tiveram dois filhos: Jim, meu futuro sogro, e Chuck. Rich foi contratado pelo Corpo de Engenheiros do Exército e tornou-se perito em construção de grandes represas e pontes. Uma década mais tarde, foi promovido a um cargo no qual trabalhava com o engenheiro-chefe em um quartel-general nos arredores de Washington, onde permaneceu pelo resto de sua carreira. Ele e Alice se estabeleceram em Arlington. Compraram um carro, que usavam para viajar, e também economizaram algum dinheiro. Algum tempo depois tiveram condições de comprar uma casa maior e pagar a universidade dos filhos, ambos muito inteligentes, sem precisar de empréstimos.
Então, em uma viagem de negócios a Seattle, Rich sofreu um infarto fulminante. Tinha um histórico de angina e tomava comprimidos de nitro- glicerina para aliviar ocasionais crises de dor no peito, mas isso era em 1965 e, na época, não havia muito o que os médicos pudessem fazer a respeito de doenças cardíacas. Rich morreu no hospital antes que Alice conseguisse chegar. Ele tinha apenas sessenta anos de idade. Alice, 56.
Com a pensão do Corpo de Engenheiros do Exército, ela conseguiu manter a casa em Arlington. Quando a conheci, vivia sozinha naquela casa na rua Greencastle havia vinte anos. Meus sogros, Jim e Nan, moravam perto, mas Alice levava uma vida completamente independente. Cortava sua grama e sabia consertar o encanamento, se fosse necessário. Ia à academia com sua amiga Polly. Gostava de costurar e tricotar e fazia roupas, cachecóis e elaboradas meias de Natal vermelhas e verdes para todos da família, adornadas com um Papai Noel de nariz de botão e o nome de cada pessoa no topo. Organizava um grupo que fazia uma assinatura anual para assistir a apresentações no centro de artes John F. Kennedy. Sentada em uma almofada para conseguir enxergar acima do painel, dirigia um grande Chevrolet Impala com motor de oito cilindros. Estava sempre de um lado para outro, resolvendo coisas, visitando parentes, dando caronas a amigos e entregando refeições para pessoas mais fragilizadas do que ela.
http://www.portaldoenvelhecimento.com/publicacoes0/item/3837-nos-a-medicina-e-o-que-realmente-importa-no-final
Nenhum comentário:
Postar um comentário