“Sempre fui uma pessoa ativa, que gosta de exercícios. A casa em que moro desde pequena, no Recife, tem dois andares e o sobe e desce de escada ajuda a família a se manter em forma. Eu tinha 27 anos e um ritmo de trabalho puxado. O ano era 2013. Nas horas em que não dava aula de inglês, estudava para uma vaga em concurso público de jornalismo, minha profissão de formação. Cansado do meu pouco tempo disponível, meu namorado acabou a relação.
Minha autoestima foi ao chão. Estávamos juntos havia dois meses, mas eu gostava bastante dele. Nem sei dizer se ele notou que eu estava 9 quilos acima do meu peso. Eu mesma só fui perceber que minha vida sedentária me trouxera gordura extra depois do rompimento com esse cara. Fiquei paranoica. Detestava me olhar no espelho, vivia me comparando com as minhas amigas: magras e lindas. Meu corpo parecia não me pertencer. Fiz tudo o que podia para virar o jogo. Crossfit, luta, corrida. Fora os milhões de dietas e as séries que eu copiava de instagramers fitness. Emendava um treino no outro, de domingo a domingo. Fiquei viciada em exercícios bem rápido e sem perceber. Queria mais, sempre mais. Quase no fim do ano, com 4 dos 9 quilos a menos, fui para a academia já cansada. Não tinha dormido bem e, para compensar o treino fraco, decidi testar um abdominal que tinha visto nas redes sociais. Estava tão sem energia que nem consegui subir na barra, que fica a 2 metros do chão, como fazia sempre. Precisei botar um caixote de madeira debaixo dela para ajudar a me pendurar. Pedi para um amigo filmar o exercício, queria postar também. O que aconteceu depois está no vídeo que correu a cidade.
Sempre fui estabanada, daquelas que vivem caindo. Por isso não me assustei quando minha perna escorregou da barra de ferro. Minha reação foi instintiva: botei o braço na frente para me proteger da queda e o bati no caixote que me ajudou a subir no aparelho. Depois topei a cabeça e caí sentada com uma perna em cima da outra. Meu primeiro impulso foi tentar levantar. Não consegui, mas também não me assustei. Fiquei ali deitada por 40 minutos, esperando o Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência]. Ligaram para minha mãe e ela chegou à academia bem antes da ambulância. Nesse momento, a dor na coluna era grande e subia para os braços, mas eu continuava quieta. Estavam todos desesperados, menos eu. Imaginei que minha recuperação pudesse levar um tempinho, mas nunca que fosse algo grave.
No caminho da academia para o pronto-socorro, com a ambulância correndo, senti cada buraco das ruas do Recife ecoando dentro dos meus ossos. Tentava disfarçar a dor mandando o vídeo da queda para os amigos. Me levaram para um hospital público, como é a praxe do Samu. Como tinha batido a cabeça, fui quase imediatamente direcionada à sala de trauma. A emergência era um espaço pequeno para as 20 macas que lá estavam. Me instalaram perto da porta e, cada vez que um enfermeiro passava e esbarrava na minha cama, eu ia à lua e voltava de tanta dor. Implorava por remédio, mas diziam que eu só podia ser medicada depois que os resultados dos exames saíssem. Quando chegaram, puxaram minha mãe para uma salinha sem porta. Não escutei quando disseram que eu tinha quebrado duas vértebras na região lombar e que perderia o movimento das pernas. Só a vi escorregando pela parede como se desfalecesse. ‘Eu vou voltar a andar?’, perguntava a todos que via de branco. Ninguém me respondia. Àquela altura, já não tinha tanta certeza de que aquilo acabaria bem.
Por sorte, reconheci um residente da equipe. Era o Leonardo [Rego], um amigo do meu último ex. Ele deixou minha mãe ficar ao meu lado num quarto que não permitia acompanhantes e, como eu tinha plano de saúde, sugeriu que ela me levasse para uma clínica particular. Foi ele mesmo que conseguiu a vaga num hospital em Olinda e agilizou a transferência, sete horas depois de eu ter sido atendida. Cada vez que me passavam de uma maca para a cama de exames, o corpo sofria. Meus braços e tronco não se mexiam e eu estava de colete cervical, apesar de não ter quebrado o pescoço. Mas a dor nas costas era lancinante. Passei a madrugada fazendo exames. Eles agora só acusavam a fratura de uma vértebra, mas a coluna estava fora do eixo, pressionando minha medula. De madrugada, peguei o celular e tomei um susto com a quantidade de mensagens de amigos preocupados. O vídeo tinha se espalhado pelo Recife, todo mundo estava certo de que eu não andaria mais. De manhã, o cirurgião foi me ver. Checou meus exames e fez outros, manuais. Furou meu pé, arranhou, cutucou. Eu sentia um ardor bem de longe na pele, mas não o membro. ‘Você não vai voltar a andar’, disse ele. ‘Está paraplégica.’
Por incrível que pareça, não recebi a notícia como uma sentença definitiva. Estava tranquila e achava que podia melhorar. A caminho da mesa cirúrgica, não pensava nos parafusos e hastes que passariam a me sustentar, mas no que fazer para voltar à vida normal. Até onde soube, a operação correu bem e, apesar dos elementos estranhos que botaram no meu corpo, me animava a cada vez que recebia uma visita, uma mensagem. A academia promoveu uma corrida em grupo com o meu nome. Foi demais passar a tarde recebendo fotos de pessoas com a frase ‘go, Gena’ [apelido de Maria Eugênia] rabiscada no corpo e dando risada no quarto lotado. Sabia que o período era crítico, mas tinha esperança. Parecia que aquilo era um sonho, do qual logo ia acordar. Sabia que, se ficasse me lamentando, tudo seria pior. Meu foco era resolver o problema. Para isso, tinha sempre amigos por perto.
Estava chegando o momento da alta, prevista para sete dias depois da operação, e o corte não fechava. Descobriram que a cirurgia me deixara com uma infecção nos ossos. Para completar, estava com hemorragia interna. Voltei à mesa cirúrgica para estancar o sangue e começou uma rotina de punções. Diariamente e sem anestesia, os médicos me furavam para conferir se eu ainda sangrava por dentro. Eu mordia o travesseiro de dor, mas fiquei esse tempo todo sem derramar uma lágrima. Só chorei 21 dias depois, quando tive febre. Já estava ali havia três semanas, via meus pais sofrendo e não melhorava. As visitas agora eram controladas por causa da infecção. Enquanto eu lutava pela minha vida, que a essa altura estava em risco, gente que não me conhecia escrevia nas redes sociais que eu queria imitar [a musa fitness] Bella Falconi.
De plantão no hospital, repórteres de programas sensacionalistas tentavam furar a segurança. Comecei a escrever um blog, que chamei também de Go, Gena!, para me comunicar com quem não podia estar comigo. Queria mostrar que passava bem e não ia desistir. A ferramenta atingiu mais gente do que eu esperava. Foram 15 mil acessos na primeira semana. Eu estava me fortalecendo de novo. Ainda fiz uma terceira cirurgia para controlar os sangramentos e, um mês depois da internação, tive alta em uma cadeira de rodas. No carro, a caminho de casa, ouvi uma música não lembro de quem que dizia algo como ‘quero ser feliz agora’. Dessa vez chorei de emoção – sem ter ideia de que tudo estava só começando.
Assim que entrei em casa, tive um choque. A cadeira de rodas não passava na porta e os quartos são todos no andar de cima. O lugar onde morei durante quase toda a minha vida não era adaptado e ninguém havia se tocado disso. Meus pais têm mais de 60 anos, minha irmã não me aguentava no colo e meu irmão morava no Rio. Chamei o Felipe, um amigo da academia que se dispôs a ajudar no que fosse preciso, e ele me carregou. No meu quarto, uma cama hospitalar que ganhamos de um amigo me esperava. A primeira noite ali foi uma das piores da minha vida. Não sei se estava traumatizada, mas me sentia sufocada, não conseguia me virar sozinha. Nesse momento, caiu a ficha de que teria uma nova vida dali em diante. Passei a madrugada acordada lembrando do hospital. Quando amanheceu, pedi para minha mãe me tirar dali. Ela me levou para o quarto dela e, no caminho, dei de cara com um espelho. Na hora em que me vi abatida, depois de uma noite toda em claro, o cabelo sujo e ainda usando fralda, caí no choro. ‘Agora sou um fardo para a minha família. Era melhor não ter sobrevivido’, pensei. Três dias depois, e 33 após o acidente, o Serginho [Rocha], um amigo de infância, veio me ver. Ele tinha se formado em fisioterapia, se especializado em neuro e queria me ajudar. Analisou meus exames, pediu outros. Antes de ir embora, falou para eu mentalizar o movimento das pernas e disse: ‘Vamos tentar melhorar’.
Passei a mentalizá-las o tempo todo. Tentava mexer e não conseguia. Até que, de madrugada, eu senti uma coisa diferente. Parecia que a pele estava esticando. Comecei a tremer. O coração acelerou. Acordei minha mãe e ela viu meu dedo se movendo. Pegou o celular para filmar e acordou todo mundo. Foi uma choradeira geral, o momento mais incrível da minha vida. ‘Agora é só ir em frente’, pensei. E foi o que aconteceu. A cada dia um músculo diferente dava sinal. O movimento era mínimo, quase imperceptível. Mas, para mim, era a esperança de que tudo podia mudar. A partir de então, mesmo com dor, fazia os exercícios com a mesma vontade. Um dia mexi um dedo, no outro, o pé, depois, a batata da perna. Filmava tudo e postava, o pessoal vibrava. Passaram-se três semanas e, num domingo, Serginho disse: ‘Vamos andar’. Eu já tinha treinado botar um pé na frente do outro, ainda assim não esperava que isso acontecesse tão rápido. Ele levou minha cadeira para um canto da varanda e mandou eu levantar. Segurei bem forte no pescoço dele, morrendo de medo de cair. Fui me arrastando, mas andei a varanda toda, que não é pequena. Até hoje, vejo esse vídeo pelo menos uma vez por mês e sinto a maior emoção. Intensificamos a fisioterapia e logo passei para o andador, que só durou duas semanas. Usei a cadeira de rodas mais uns seis meses para percorrer longas distâncias, sempre alternando com muletas. Descobrimos que, apesar da pressão, minha medula não tinha sido perfurada. Os médicos não acreditavam no que viam.
Hoje, ando mais devagar do que antes e puxo um pouco a perna esquerda. Saio sempre com uma bengala para me apoiar e, volta e meia, ouço alguma coisa do tipo: ‘Tão bonita e aleijada’. Sinceramente, prefiro que só se aproxime quem está realmente interessado. Na primeira vez que transei depois do acidente, quase morri de vergonha. Pedi que ele apagasse a luz e, mesmo com pouca sensibilidade (só voltei a ter orgasmos dois anos mais tarde), me senti mulher de novo. O que mais me incomodava no meu corpo era a cicatriz nas costas. Até que fui convidada para fazer fotos sensuais [publicadas em um jornal pernambucano] e a exploramos muito no ensaio. É uma marca grande e nada bonita, mas aprendi a me orgulhar dela.
Atualmente, faço terapia para entender tantas mudanças. Amadureci 20 anos em dois, meus valores, minha vaidade, tudo mudou. Quando olho no espelho, sei que não há ninguém como eu. Antes do acidente, podia ser a mais gata da festa e não me sentia bem. Ainda estou em recuperação, mas já dou aulas particulares de inglês e, há quatro meses, comecei a praticar remo paraolímpico para competir. Meu corpo é muito melhor do que o de antes, nunca tive a barriga definida de agora. Aprendi que é a cabeça que limita a gente. Somos capazes de tudo,tudo. É só decidir e lutar.
Fonte: Marie Claire
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domingo, 6 de março de 2016
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