sexta-feira, 9 de novembro de 2012

SOMOS DEFICIENTES VISUAIS SOCIAIS ?


As pessoas têm uma visão muito estereotipada sobre a pessoa com deficiência, razão que me obriga a esclarecer que eu sou uma garota de 22 anos como outra qualquer, que estudou, que quer trabalhar, que namora, que tem amigos, que gosta de sair de vez em quando, enfim, que faz o que todo mundo faz.Até os meus 17 anos, aliás, a deficiência visual não tinha quase nenhum impacto sobre a minha vida.

É claro que havia diferenças entre as outras crianças e eu, como por exemplo o fato de eu ter uma atividade extra (freqüentar uma instituição especializada no atendimento a pessoas com deficiência visual) e o fato de, na escola, eu me sentar sempre ao lado de um/a amigo/a que, enquanto copiava as lições da lousa, ia repetindo tudo em voz alta pra que eu pudesse copiar também no meu caderno (eu não conseguia enxergar o que estava escrito na lousa, mas sempre escrevi normalmente em cadernos comuns, só procurando comprar aqueles com linhas que tivessem um pouco mais de contraste).

Tive 4 desses amigos ao longo do Ensino Básico. Fora essas duas diferenças, porém, estou segura em dizer que não havia qualquer outra. Eu sempre fui uma ótima aluna, com boas notas. Aprendi a ler antes mesmo de entrar na pré-escola, estimulada pela minha família em casa.

Me relacionava normalmente com as outras crianças, acredito que por conta da minha postura, que, por sua vez, se devia à maneira como meus pais sempre lidaram com a situação, me fazendo crer que não sou diferente de ninguém e que não sou coitadinha.Mas a partir dos 17 anos, meu mundo começou a ruir. Isso coincidiu com a busca pelo primeiro emprego.

Quando decidi que era hora de trabalhar, percebi o quanto as portas estavam fechadas pra mim, apesar da lei de cotas. Descobri que muitas empresas encontraram uma maneira no mínimo questionável de lidar com a lei: já que eram agora obrigadas a contratar pessoas com deficiência, que fossem ao menos deficiências leves, muitas vezes quase imperceptíveis e com pouquíssimo impacto na vida das pessoas. A deficiência visual, obviamente, não estava incluída nessa concepção.

Rapidamente me dei conta de que ela inspira desconfiança e medo nos empregadores, que julgam os deficientes visuais como pessoas incapazes de ter alguma ocupação, e pior, que nos infantiliza (como aliás a sociedade em geral faz).O primeiro trabalho que consegui foi como empacotadora num supermercado (única vaga que muitas empresas do setor destinam a pessoas com deficiência, aliás). Não era o meu emprego dos sonhos.

Eu estava no segundo ano da faculdade de letras, e julgava que podia e merecia um emprego melhor. Mas precisava do dinheiro, porque as pessoas não se dão conta, mas os deficientes também têm contas a pagar, têm projetos de vida. Os meus sempre foram a estabilidade econômica, a casa própria, ter uma família (mas sem ser sustentada e dependente do meu namorado). E para pagar contas e realizar projetos como esses, é preciso ter dinheiro, que, por sua vez, só vem com o trabalho.

Não fiquei muito tempo nesse emprego. Eu sentia dores horríveis ao final do dia por permanecer tanto tempo em pé. Eu havia conseguido aprovação num exame para contratação de professores temporários na rede estadual, e decidi fazer aquilo que estava estudando pra fazer: dar aulas.Dei aulas durante um ano.

Nunca tive nenhum problema com os meus alunos. Muito pelo contrário, eles gostavam de mim e, falo com toda a segurança, eu não era uma professora menos competente que as outras pela deficiência visual. Mas o contrato durava apenas 1 ano, e por conta de uma lei estadual aprovada para impedir que temporários criassem vínculo com o estado, eu tinha de permanecer 200 dias letivos fora de uma sala de aula.

Como as contas não ficariam paradas por 200 dias, nem minhas necessidades e projetos, decidi procurar outro emprego. Encontrei vaga numa construtora, mas a decepção foi enorme.Fui contratada para preencher planilhas com dados das obras da empresa no computador. Mas nunca fiz isso realmente.

Quando cheguei, me deram a tarefa de separar notas fiscais. Muitas dessas notas eram de difícil visualização, e eu encontrava muitas dificuldades. O pessoal da empresa percebeu isso, e me transferiu pra recepção. Mas não tiveram confiança suficiente para me deixar realizar todas as atividades de uma recepcionista sozinha, e, obviamente, não iam manter duas funcionárias numa mesma função, então resolveram me demitir.

Foi uma demissão traumática, porque a empresa, em vez de conversar comigo, resolveu ligar para a minha mãe pra avisá-la sobre a demissão. Foi a minha mãe que me contou que eu seria demitida por telefone. Fiquei perplexa e muito revoltada, e fui falar com o pessoal do RH. E o mais surpreendente é que a responsável pelo setor disse não entender por que eu estava daquele jeito.

Considerou normal me tratarem como se eu fosse uma criança, ainda sob a responsabilidade da minha mãe; como se eu, mesmo sendo maior de idade, sendo escolarizada, estando no mercado de trabalho, fosse incapaz de resolver minhas próprias questões; como se meus olhos tivessem alguma relação com o meu cérebro, e portanto enxergar menos significasse ser mentalmente atrasada.Recentemente prestei um concurso público para professora no estado de São Paulo.

Fui aprovada, já escolhi minha escola, e agora estou passando por um curso de formação para os ingressantes, que é requisito básico para assumir o cargo. Mas tenho insônia ao pensar que ainda tenho pela frente uma perícia em que tudo pode acontecer, inclusive eu ser considerada inapta ao cargo por ser deficiente visual, e ver mais uma vez, com isso, meus sonhos irem por água abaixo.Porém creio que não foi só a decisão de trabalhar que fez com que tudo ruísse.

Quando somos crianças, não temos tanta percepção assim de tudo o que acontece. Acredito também que minha mãe tomava cuidado pra eu não perceber a indiscrição das pessoas (sim, elas são muito indiscretas e não conseguem se conter a fazer perguntas sobre o por que seu olho é assim). Mas quando a gente cresce, não há cuidado que evite perceber como as pessoas podem ser cruéis, como o mundo pode ser preconceituoso.Agora, escrevendo esse texto, me lembro de várias situações pelas quais passei, algumas, inclusive, cujas marcas permanecem até hoje e, creio, permanecerão pra sempre.

Certa vez, no Ensino Médio (que cursei numa escola técnica onde consegui estudar depois de ser aprovada num vestibulinho) uma professora propôs um trabalho em grupo. A turma foi formando os grupos e eu me sentei ao lado de umas meninas com as quais eu sempre fazia os trabalhos. Mas nesse dia uma dessas moças se levantou, e disse à professora e aos colegas: “Não é justo, toda vez que tem trabalho em grupo a Fernanda sempre sobra pra nós. Não estou reclamando, mas por que ninguém mais quer?”.

Fiquei em choque, em primeiro lugar por ter me sentido tão exposta, tão ridicularizada diante de todos; em segundo lugar porque eu nunca fiquei dependendo de ninguém em trabalho em grupo nenhum. Eu sempre fazia a minha parte e, não raras vezes, também a dos outros, porque sempre fui boa aluna.Nesse dia, saí da sala chorando. Enquanto saía, ouvi meus colegas e a professora repreendendo a moça.Também a ouvi tentar explicar o inexplicável.

Depois ela veio me pedir desculpas. Mas tem coisas que nem milhões de desculpas jamais apagam.Outra coisa que sempre acontece, além da indiscrição das pessoas em ficar perguntando, invadindo o meu espaço (porque eu detesto que me façam perguntas do tipo “nossa, você é cega?!”, principalmente quando estou acompanhada, porque aí não sou só eu a me constranger, mas quem me acompanha também, porque fica preocupado com o que eu vou sentir diante disso), é me tratarem como a mulher invisível.

Se eu encostar num balcão de uma lanchonete acompanhada de alguma outra pessoa, é incrível como o atendente não vai se dirigir a mim, mas a quem está comigo, pra perguntar o que é que eu vou querer comer!Acontece ainda, talvez por boa intenção, de as pessoas acabarem sendo desagradáveis por acreditarem que estão ajudando.

Certa vez eu saía de uma festinha no período da manhã, numa cidadezinha bem pequena onde morei por algum tempo num período em que saí da casa dos meus pais. E eis que surge uma senhora e sai me arrastando pelo braço para me levar até a casa da minha avó.Ajudar é uma coisa boa. Mas é bom esperar que te peçam ajuda, ou então oferecer a ajuda, deixando que a pessoa possa aceitar ou recusar. Mas sair arrastando alguém pelo braço é invadir o espaço da pessoa, é infantilizar, é constranger.

Algumas pessoas, porém, são mal intencionadas. Uma vez eu pedi informação sobre o ônibus que precisava pegar pra chegar em casa depois da aula (o transporte público é sempre um grande problema, porque não é adaptado a deficientes visuais, que não conseguem identificar itinerários). A pessoa me disse, depois de um tempo, que o ônibus que acabava de encostar era o que eu precisava. Subi, e depois percebi que não era.

Mas percebi quando ele estava na rodovia. Desci ali, num lugar perigoso, e só consegui voltar pra casa porque um homem parou e me deu uma carona. Mas a história podia não ter acabado tão bem.Com relação a relacionamentos afetivos, é impressionante como as pessoas são extremamente idiotas (não há outro termo).

Elas parecem ficar espantadas quando eu digo que namoro há cinco anos. Uma vez fui me consultar com um ginecologista, e ele foi fazendo as perguntas. Quando chegou a vez da pergunta “você já teve relações sexuais?” ele não esperou eu abrir a boca. Foi logo respondendo, ele mesmo: “não, né?”. Ora, por que não?

Não sou uma mulher como qualquer outra? Eu namoro como qualquer outra mulher da minha idade. Estou há cinco anos com uma pessoa que não é deficiente visual, e até tenho um enteado com o qual me dou maravilhosamente.Nunca tive problemas com isso. Ele não foi meu primeiro namorado e nunca ouvi nada de preconceituoso de homem algum. Só uma vez, por volta dos 12 (mas aí não se tratava de homem, e sim de criança), eu estava passando por uma rua próxima a minha casa, e escutei a seguinte conversa de dois garotos falando sobre mim: - Essa aí é a garota em quem você está interessado? - Não, ow! É claro que não, ela é cega!

Como se ter deficiência visual (o que no meu caso não equivale a cegueira) excluísse a possibilidade de alguém poder se interessar por mim. Como se fosse um absurdo que alguém se interessasse;Enfim, eu podia contar uma série de outras histórias da minha vida. Mas essas ilustram um pouco do preconceito que a gente sofre. E ilustram também o quanto nossa vida poderia ser normal, se as pessoas não fossem tão preconceituosas.

Texto elaborado por Fernanda Martins de Castro, graduada em Letras e Professora concursada no estado.


2 comentários:

  1. Tenho um grande abraço reservado para lhe dar, espero um dia poder realizar.
    Parabéns por tão maravilhosas e necessárias postagens.
    Deixo por enquanto um abraço fraterno via internet.
    Bj
    Nicinha

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    Respostas
    1. Nicinha obrigada pelo incentivo, tomara que a sua bondade em perceber as necessidades e direitos destas pessoas se espalhe em outros corações. Será melhor para todos!

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