quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Acessibilidade e Cultura: Por que sim? Por que não?


Flavia Boni Licht.


Certas coisas não estão escritas no manual, fazem parte da consciência crítica de cada um.

Arquiteto João Filgueiras Lima

No seu artigo 5º, Capítulo 1, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, afirma a Constituição brasileira, vigente desde 1988, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Já a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – aprovada por unanimidade pela ONU em 2007, ratificada pelo nosso Congresso e promulgada pelo presidente da República em 2009 – abre seu Capítulo 3 listando os princípios gerais válidos para reger a integralidade de seu conteúdo, dentre os quais destacamos o respeito pela dignidade, autonomia e independência das pessoas, a não-discriminação e a igualdade de oportunidades, o direito à plena e efetiva participação e inclusão na sociedade e o respeito pela diferença.

Também vigente neste país desde o ano 2000, lembramos aqui o contido na Lei federal 10.098 (regulamentada, em 2004, pelo Decreto 5.296) que estabelece as normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios, nos meios de transporte e de comunicação.
Bem antes disso, ainda na década de 1990, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e Câmara Municipal de Porto Alegre aprovam leis que determinam o acesso e a circulação livre, segura e independente a todas as pessoas nos espaços públicos.

Assumimos também, desde 1948, quando foi promulgada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que toda pessoa tem direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes, e que, com a aprovação, em 2007, da já citada Convenção Internacional, os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a participar na vida cultural, em base de igualdade com as demais pessoas, e deverão tomar todas as medidas apropriadas para que as pessoas com deficiência possam usufruir o acesso a materiais, atividades e serviços culturais, bem como a monumentos e locais de importância cultural nacional.

Aceitando e tomando por base esse conjunto de preceitos, parece-me ficar sem sentido a pergunta: por que sim à acessibilidade? A resposta pode ser dada de forma singela e definitiva: porque é lei! Ou melhor, leis, inúmeras leis. E leis que foram estudadas, debatidas e aprovadas, e que expressam direitos humanos essenciais, direitos essenciais de todo ser humano! E que, portanto, devem – ou deveriam – ser cumpridas.
Mas sabemos bem que algumas leis não pegam e que nas questões de direitos humanos não somos tão virtuosos como gostamos de nos acreditar ser. Assim, talvez o melhor seja discutir, mais do que o por que sim, o seu contraponto direto, o por que não à acessibilidade.

Foi tentando encontrar respostas para essa interrogação que iniciei, neste ano de 2011, pesquisa dirigida à identificação das barreiras existentes à participação das pessoas nos espaços, programas, atividades e serviços das instituições culturais públicas municipais de Porto Alegre e nas instituições culturais com atividades públicas em edificações tombadas pelo nosso município. Poderia ter optado por outro foco: escolas, bancos, hospitais, restaurantes, igrejas, hotéis.

Escolhi as instituições culturais por três motivos. Os dois primeiros, mais pragmáticos: a facilidade de contato com essas instituições por estar trabalhando na Coordenação da Memória Cultural, vinculada à Secretaria Municipal da Cultura, e a possibilidade de, partindo da identificação das barreiras existentes, sugerir e, talvez, até concretizar algumas mudanças nos locais pesquisados. O terceiro motivo que me conduziu a essa escolha foi o de acreditar que o acesso à cultura no seu sentido mais pleno – incluindo a participação na dinâmica da sua própria criação, seja como artista, seja como espectador – está entre os direitos humanos fundamentais.

Assim, nessas instituições – cuja essência é o estudo e a prática da cultura, a qual, tomando por empréstimo as palavras de José Luiz dos Santos, contribui no combate a preconceitos, oferecendo plataforma firme para o respeito e a dignidade nas relações humanas – imaginava eu encontrar terreno fértil e favorável para avançar neste debate.

Mesmo sabendo de antemão, por conhecê-los, que a quase totalidade dos espaços dedicados à cultura não atendem às exigências da legislação e normativas da acessibilidade no que se refere aos seus prédios, supunha que, nesses locais, muitos programas e serviços já estivessem sendo desenvolvidos com esse olhar.
Assim, organizei previamente dois instrumentos para o recolhimento de dados: um questionário direcionado aos gestores das instituições, com questões referentes à participação pública (acesso/entendimento/uso) nos espaços, programas, atividades e serviços oferecidos; e um roteiro para guiar a avaliação técnica das características físicas das edificações e do entorno imediato.

E iniciei o trabalho. Falando, ouvindo, observando, medindo, lendo, anotando, fotografando. Todos aqueles até agora entrevistados são profissionais qualificados, reconhecidos e com larga experiência nas suas respectivas áreas de atuação. E mesmo tendo visitado poucas instituições do total listado, acredito já ser possível trazer aqui algumas observações, apresentar algumas reflexões, formular algumas perguntas para seguir esse debate, transitando entre as possíveis respostas para o por que não à acessibilidade.

Começando, então, pelas questões aparentemente mais singelas, fica explícito o desconhecimento do significado do termo acessibilidade. A existência de uma rampa ou de um elevador já permite afirmar, na quase totalidade das vezes, que uma instituição é acessível. Acessibilidade como qualidade que respeita o direito de todos e abre possibilidade para a compreensão dos espaços, o estabelecimento de relações com os seus conteúdos e o uso dos seus diversos elementos reduz-se, majoritariamente, à existência de uma rampa ou de um elevador.

Mesmo que essa rampa ou esse elevador estejam em desacordo com os detalhes explicitados nas normativas; mesmo que todas as demais exigências legais não tenham sido contempladas; mesmo deixando de lado o olhar do senso comum e ouvindo observações profissionais, nunca foram lembrados o Braile, a Libras, a áudio-descrição ou o piso tátil, só para ficar em alguns exemplos.

Várias explicações para esse fato podem ser encontradas. Uma delas, talvez a mais óbvia, diz respeito ao símbolo internacional da acessibilidade, o qual estabelece a correspondência direta à imagem de uma cadeira de rodas. Não que se defenda aqui mudança desse símbolo, hoje mundialmente usado e reconhecido. São apenas tentativas de encontrar explicações para exigências não cumpridas e para desconhecimentos do real significado e abrangência do termo.

Outra observação recorrente – e que para os diretamente envolvidos com a temática pode parecer já superada – é a necessidade de ampliar sempre e cada vez mais a divulgação dos direitos das pessoas com deficiência, da necessidade dos projetos terem como foco a diversidade humana e da acessibilidade como uma conquista de todos e para todos. Na maioria dos casos, o que se constata não é uma disposição desfavorável, e sim desconhecimento.

Avançando um pouco além do mais evidente e entrando num terreno menos concreto e mais espinhoso, vale perguntar se, talvez, o por que não à acessibilidade estaria relacionada diretamente ao fato de não reconhecermos no diferente alguém com direitos iguais aos nossos.

Afinal, construímos, com requintes e detalhes, uma cultura excludente que nos esforçamos em manter e aprofundar desde a democracia ateniense, que sacrificava as crianças nascidas com deficiência, até os tempos atuais: há poucos anos, numa escola aqui em Porto Alegre, alunos de seis anos de idade ouviram de um professor, no primeiro dia de aula, que ali não seriam colegas, nem amigos, e sim competidores. Como uma dessas crianças pode pensar em ser solidária? Como respeitará as diferenças?

A pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, realizada em 2009 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), que entrevistou quase vinte mil alunos, pais, mães, diretores, professores e funcionários em 501 escolas públicas brasileiras, concluiu que 96,5% dos entrevistados têm preconceito com relação a pessoas com deficiência.

O estudo, realizado com o objetivo de criar e incentivar ações para fazer chegar à escola o respeito às diferenças, indica ainda que 99,9% dos entrevistados desejam manter distância de algum grupo social (98,9% das pessoas com deficiências mentais e também dos homossexuais; 97,3% dos ciganos; 96,2% das pessoas com deficiência física; 95,3% dos indígenas; 94,9% dos pobres; 94,6% dos moradores da periferia ou de favelas; 91,1% dos moradores da área rural e 90,9% dos negros).

De acordo com o coordenador dessa pesquisa, o professor José Afonso Mazzon, não existe alguém que tenha preconceito em relação a uma área e não tenha em relação à outra. A maior parte das pessoas tem de três a cinco áreas de preconceito. O fato de todo indivíduo ser preconceituoso é generalizado e preocupante.

Voltando ao trabalho que estou realizando, algumas respostas que ouvi também apontam para uma direção preocupante: Nunca tinha pensado nisso! Pensava que essas exigências eram apenas para ônibus e para calçadas. Nunca imaginei que um centro cultural precisasse atendê-las.O arquiteto evitou desfigurar a fachada principal do prédio e colocou a rampa na entrada lateral, vinda do estacionamento. Afinal, todo cadeirante chega aqui de automóvel. Aqui, tratamos de Cultura! Nosso foco não é o atendimento a pessoas com deficiência.

São comentários que denotam desinformação. Como já explicitado neste mesmo texto, as leis existem e estão em vigor há um tempo razoavelmente longo. Por que são ignoradas? Será por puro desinteresse pelo outro, pelo diferente de mim, pelas suas necessidades? Neste mundo em que hoje vivemos, onde o que vale é chegar na frente, ser o vencedor, talvez quanto maior o número de barreiras, melhor. Desde que para os outros, claro.

Zygmunt Bauman, em Confiança e Medo na Cidade, afirma que as diferenças nos incomodam e nos impedem de interagir, de atuar amistosamente e que, se quisermos compreender nossas diferenças, precisamos formular novas questões. Quais seriam elas?

Será que temos medo de nos defrontar, conforme afirmou a jornalista Lelei Teixeira no seu depoimento na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, por ocasião do seminário Mídia e Deficiência, com a pessoa com deficiência, que, seja por razões físicas ou mentais, instaura a desordem num mundo aparentemente normal, desorganiza a frágil organização da sociedade? [...] Ao ignorar ou excluir as diferenças, certamente toma-se o caminho mais fácil e mais curto para a eliminação do humano, do caráter criativo e inusitado dos homens, que está no encontro das suas múltiplas possibilidades e capacidades.
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) expressa claramente, no seu Código de Ética, que as instituições culturais têm o compromisso de abrir seus espaços, acervos, coleções e atividades a todos os públicos, agindo como interface da multiplicidade de percepções, gerando acesso para diversificadas sensibilidades e para variados entendimentos, visando a satisfazer uma das necessidades básicas do ser humano: conhecer nosso mundo. Não custa perguntar quantas vezes esse Código é desrespeitado...
Assim, necessário se faz, portanto, a construção de estratégias e metodologias, a utilização de equipamentos e produtos, o desenvolvimento de programas e projetos que possibilitem o acesso, a contemplação e a captação dos conteúdos expressos pelo patrimônio cultural de forma não discriminatória.
  • Como os profissionais atuantes nesses centros devem atender demandas diferenciadas, incorporando a acessibilidade às práticas institucionais cotidianas?
  • Como um museu deve se preparar para receber todos os usuários de forma a contribuir com o desenvolvimento das potencialidades funcionais, neutralizando e superando diferenças sensoriais, físicas e/ou cognitivas?
Em 2009, a Galeria Tátil do Museu do Louvre organizou no Museu Nacional de Bogotá a exposição Sentir para Ver. A mostra trouxe alguns questionamentos importantes: a Vênus de Milo, representação da deusa do amor, era um objeto que podia ou não ser tocado pelos gregos? Possuíam as culturas pré-hispânicas uma diferença clara e marcada entre as peças que apenas podiam ser vistas e as que podiam ser tocadas? As imagens da Virgem Maria e de outros santos venerados nos territórios americanos durante o período colonial e, inclusive, até hoje, não são imagens que foram tocadas e abraçadas pelos devotos como demonstração de afeto e gratidão? Quantos tocaram uma escultura de Simon Bolívar em praças de diferentes cidades latino-americanas? Quem se atreveria a tocar uma estátua de Bolívar exposta num museu? O tocar e o não tocar estão mediados por uma série de parâmetros estabelecidos que são próprios dos espaços públicos e dos privados. Porém, foram sempre iguais esses parâmetros? Quem os define?
Interessante refletir sobre isso: por que podemos tocar numa escultura colocada em praça pública? E por que isso nos é vedado naquelas expostas em museus? Essa diferenciação existe mesmo em se tratando, por exemplo, de esculturas assinadas pelo mesmo artista (seja ele mais ou menos famoso), independente do material (seja ele mais ou menos frágil) e da época em que foram executadas (seja ela mais ou menos histórica). Será o caráter do espaço - aberto ou fechado - que distingue o tipo de contato do público com as obras de arte? Quem estabeleceu os padrões que impedem ou incitam aproximações? Quando e por que esse toque deixou de ser incentivado e passou a ser proibido?

Vale também pensar por que delegamos majoritariamente ao olho toda a possibilidade de captar sensações? Por que, pelo papel hegemônico dado à visão, reprimimos o toque e, em menor escala, todos os demais sentidos?

Tendo como objetivo a inclusão de todos na construção e na fruição da cultura, não seria o caso de, sem rejeitar as virtudes do ver, apostar fundo na multissensorialidade ou – de forma mais poética, como nos fala Gaston Bachelard – na polifonia dos sentidos? Afinal, como bem lembrado pelo arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa, o olho é o órgão da distância e da separação, enquanto o tato é o sentido da proximidade, intimidade e afeição. O olho analisa, controla e investiga, ao passo que o toque aproxima e acaricia.
Longe desse entendimento, muitas vezes, um simples toque é visto como um ato de destruição. Mas qual toque tem o poder de aniquilar marcas da nossa cultura? Apenas o humano? E o toque do tempo também não age sobre um bem? E, ao restaurar um bem, não destruímos essa ação do tempo, que, por sua vez, também o enriquece? Como nos demos esse direito? Quem nos deu esse direito?

Ainda no final do século XIX, John Ruskin, um dos primeiros teóricos da restauração, já alertava para a impossibilidade de copiar a obra da chuva e do sol, pois o resultado de uma restauração sempre terá a ‘dureza’ de uma obra nova. Mais adiante, com reflexões já datadas do século XX, o arquiteto italiano Camilo Boito defende que nenhuma intervenção deverá tocar a poesia e a pátina do tempo. Também Cesare Brandi, na sua Teoria da Restauração publicada em 1963, reafirma a questão da temporalidade, nos dizendo ser inaceitável apagar as marcas do transcurso do tempo nas obras de arte.

Talvez valha repensar o que define a qualidade cultural de um bem e qual o limite da obra original? Considerando a longevidade do monumento, qual o momento histórico a ser preservado? Quem tem o poder de tomar essa decisão? E se nossos bens não deixam de ser patrimônio quando se deterioram e se restauram, por que deixariam de sê-lo quando tornados acessíveis a todos? O que e quem define a autenticidade de um bem? Será que não é chegado o momento de, na carona da acessibilidade, revisar todos esses ensinamentos que fomos recebendo e repassando sem parar para pensar?

No documento intitulado Carta de Brasília, elaborado em 1995, em reunião coordenada pelo IPHAN e da qual participaram representantes dos países do Cone Sul, lê-se que O significado da palavra autenticidade está intimamente ligado à ideia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o que é dado como certo, sobre o qual não há dúvidas.

Aqui, também cabe perguntar: o que é verdadeiro? O que pode ser dado como certo? Sobre o que não há dúvidas? Carlos Drummond de Andrade perturba algumas certezas definitivas no seu poema Verdade. Vale refletir com ele.

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

O que a porta da verdade escancara nesse quadro do patrimônio e da acessibilidade?
Sabemos todos que, nos museus, os objetos exigem condições específicas e adequadas de catalogação, acondicionamento, manuseio, conservação, umidade, temperatura, luminosidade, limpeza e restauro. E as pessoas? São os seres humanos ou os objetos que têm necessidades? Colecionar, preservar e expor são um fim em si ou uma forma do museu desempenhar seu papel social, facilitando e estimulando a todos – independente de idade e de condição física – o acesso à cultura?

Como se pode ver, as interrogações são intermináveis, têm inúmeros significados, percorrem variadas direções. Mas se mantém sempre a dúvida mais abrangente, que acolhe todas as demais: por que não à acessibilidade?

Sabemos que, em muitos casos, para garantir a vida dos monumentos, instituições culturais se instalam em edificações históricas tombadas. Aqui, o estabelecimento da relação entre acessibilidade e cultura torna-se ainda mais complexo, considerando que tais edifícios são frutos de épocas passadas onde a inclusão não figurava entre os preceitos legais daquelas sociedades.

Mas, com o passar da história, novos ventos sopram nas antes definitivas e conservadoras teorias e práticas sociais. E isso também acontece no que se refere aos ditames internacionais relacionados à manutenção e conservação dos monumentos. Podemos ler, por exemplo, já em 1964, na renovadora Carta de Veneza que a preservação será sempre favorecida por sua função útil à sociedade (desde que as alterações necessárias para tanto não desvirtuem o autêntico de cada bem).

Passados pouco mais de dez anos, em 1976, na sua 19ª Sessão, reunida em Nairóbi, sobre a Salvaguarda dos Conjuntos Históricos e sua Função na Vida Contemporânea, a UNESCO estabelece, entre os princípios gerais daquela Carta, a necessária e harmoniosa integração dos monumentos na vida coletiva da nossa época.

Aprofundando a relação entre acessibilidade e patrimônio, em 1990, o arquiteto Antonio Cravotto - representando a Comissão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Uruguai, no 2º Seminário Ibero-americano de Promotores e Formadores em Acessibilidade ao Meio Físico, realizado em Montevidéu - apresentava seu entendimento sobre essas questões, meio na contramão do muito que se vê ou ouve por aí ainda hoje: em termos práticos, os bens patrimoniais só podem ser salvaguardados se usados apropriadamente no presente [...]. Para tanto, todos esses bens serão necessariamente afetados por modificações espaciais e estruturais; incorporação de elementos, dispositivos, sistemas e redes técnicas; inclusão de equipamentos e de sinalização. Essas intervenções não possuem justificativa nem melhor nem diferente das originadas pela eliminação das barreiras para pessoas com deficiência.

Ou seja - e assim eu entendo a posição do professor Cravotto - ou os bens patrimoniais se adaptam às exigências contemporâneas, ou eles vão perdendo o seu significado, pela impossibilidade de uso. Isso poderá ferir muitos ouvidos, mas, por si só, a transformação de uma residência num museu já pressupõe inúmeras adequações. A instalação de modernos aparelhos de ar condicionado em prédios históricos não seria um exemplo definitivo e inconteste de adaptações permitidas, aceitas e até festejadas? Mais exemplos? A substituição de superadas instalações elétricas e hidráulicas ou de madeiras atacadas por cupins em telhados, esquadrias e pisos. Só quando chegamos à questão da acessibilidade, tudo se torna agressivo ao bem patrimonial. Por que dizemos não apenas à acessibilidade? Pelo custo das adequações? Isso me parece uma questão menor frente a tudo o que se admite gastar nas demais intervenções.

No caso específico das questões afetas ao projeto dos espaços, tombados ou não, muitas vezes se ouve que as adaptações ferem o edifício, pois têm aspecto desagradável; a bela escadaria de mármore não poderá receber um corrimão, pois se entende que a inserção desse novo elemento irá desfigurar a majestosa fachada. Diferente disso – e também no que se refere à acessibilidade – projetos bem estudados geram bons e qualificados espaços. O sempre citado acesso principal ao Museu do Louvre, realização do arquiteto I.M.Pei, é apenas um dentre tantos. Porém, muitas vezes, as adaptações dos espaços para que atendam aos requisitos da acessibilidade são feitas meio que para se livrar do problema. Aí, dificilmente as soluções deixarão de ser ruins ou equivocadas.

Saindo dos edifícios e chegando às praças públicas dos centros históricos – igualmente consideradas, e com razão, ambientes culturais – esse posicionamento – o não apenas à acessibilidade – se mantém vivo e forte: aceitamos a eliminação ou a substituição de árvores e arbustos, a inserção de novos quiosques, bancos e lixeiras, a mudança no desenho dos canteiros, a troca das antigas placas de sinalização. Mas, olhando pelo foco da acessibilidade, aceitamos, quando muito, alguns rebaixos em meio-fios. Nem pensar em macular as calçadas de pedra portuguesa com a execução de um piso tátil, absolutamente necessário para que as pessoas cegas ou com baixa visão possam aproveitar aquele espaço com a mesma liberdade e autonomia de que dispõem todos os demais. Ou em estudar alternativas melhores para pisos pouco confortáveis aos usuários de cadeiras de rodas.

Em 2003, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) publica sua Instrução Normativa nº. 1, que também trata da relação entre acessibilidade e patrimônio histórico: as soluções adotadas para a eliminação, redução ou superação de barreiras na promoção da acessibilidade aos bens culturais imóveis devem compatibilizar-se com a sua preservação e, em cada caso específico, assegurar condições de acesso, de trânsito, de orientação e de comunicação, facilitando a utilização desses bens e a compreensão de seus acervos para todo o público.

Dessa forma, tomando como base as palavras do professor Cravotto e também as instruções do IPHAN, cabe perguntar:
  • Será possível respeitar o passado de uma edificação, desrespeitando os direitos das pessoas, selecionando com nossas decisões de restauro, quem pode ou não pode desfrutar de um patrimônio que é de todos?
  • Assim como no caso dos acervos, será que não deveríamos pensar primeiro nas necessidades dos seres humanos e depois nas dos edifícios?
Sabe-se que esse não é um trabalho fácil nem rápido. Teremos que, para tanto, desconstruir nossos conhecimentos e também nossas práticas para pesquisar, descobrir e edificar novas e boas soluções para todos, mas, sem a menor dúvida, é chegado o momento de perguntar como transformar também nossas instituições culturais em espaços acessíveis para que, efetivamente, se constituam em motor de mudança na direção de uma sociedade inclusiva.
Será que não seremos todos iguais na diversidade, se a infraestrutura for adequada, se a tolerância desafiar os padrões, se o respeito romper com os programas e projetos tradicionais, se a solidariedade voltar a ser considerada como um valor por todos nós? Talvez seja essa uma utopia, mas – e, para concluir, volto às palavras do professor Cravotto – não será a utopia, corretamente entendida, a determinar a acertada direção de um avanço social?
Por que não à acessibilidade?

Referências:

  1. BAUMAN, Zygmunt. CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE. Jorge Zahar Editor. São Paulo. 1ª edição. 2009.
  2. JUNCÁ UBIERNA, José Antonio. El binomio Accesibilidad y Patrimonio: a la búsqueda de un equilibrio compatible. ACCESIBILIDAD Y PATRIMONIO – YACIMIENTOS ARQUEOLÓGICOS, CASCOS HISTÓRICOS, JARDINES Y MONUMENTOS. Junta de Castilla y León, España. 2007.
  3. LEMOS, Carlos A. C. O QUE É PATRIMÔNIO HISTÓRICO. (Coleção Primeiros Passos - 3ª reimpressão da 5ª edição de 1987).São Paulo. Ed. Brasiliense, 2006.
  4. MIGUEL, Ana Maria Macarrón. HISTORIA DE LA CONSERVACIÓN Y LA RESTAURACIÓN: DESDE LA ANTIGÜEDAD HASTA FINALES DEL SIGLO XIX. Technos Ed. Madrid 1995.
  5. PALLASMAA, Juahani. OS OLHOS DA PELE – A ARQUITETURA DOS SENTIDOS.Bookman Companhia Editora/Artmed Editora S.A. Porto Alegre, 2011..
  6. SANTOS, José Luiz. O QUE É CULTURA. (Coleção Primeiros Passos - 14ª reimpressão da 16ª edição de 1996).São Paulo. Ed. Brasiliense, 2008.
  7. TOJAL, Amanda Fonseca e outros. CADERNO DE ACESSIBILIDADE. REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS EM EXPOSIÇÕES E MUSEUS. 1ª edição. Expomus. São Paulo. 2010.
Do livro: Celebrando a Diversidade. Pessoas com Deficiência e Direito à Inclusão.
Edição 2010.
Organização: Flavia Boni Licht e Nubia Silveira.
Apoio: Planeta Educação - em especial, Elisete Oliveira Santos Baruel e Érika de Souza Bueno.
Capítulo IX: Pela Expressão na Cultura, no Turismo e no Lazer
Artigo: Acessibiilidade e Cultura: Por que Sim? Por que Não?
Flavia Boni Licht (Porto Alegre)
– arquiteta, responsável pela concepção desta publicação e, em parceria com a jornalista Nubia Silveira, de sua organização.


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