Por Adriana Kortlandt *
no Observatório da Imprensa
Cada cultura constrói sua criança. E como a sociedade e a imprensa
pensam na pauta sobre quem é hoje a criança retratada nas reportagens?
Ela, com certeza, é bem diferente daquela das reportagens de anos atrás.
E a mídia tem conseguido pensar e acompanhar isso? Qual a imagem, a
descrição, o detalhamento desse personagem tão próximo e tão distante de
cada um de nós? O repórter e o editor sabem falar sobre criança com a
imagem de seus filhos real ou idealizada?
Este é o primeiro de três artigos que propõem uma reflexão sobre a
infância que estamos construindo e falando/escrevendo sobre. “A
construção da imagem da criança — Antes” apresenta brevemente alguns
pilares da construção deste conceito no Ocidente: a criança, como era
vista no medievo europeu, chegando até a idade moderna. “A construção da
imagem da criança — Agora” aborda a construção da infância no Ocidente,
no século 20, e “A construção da imagem da criança — Aqui”, a realidade
brasileira, uma mescla de ambos.
Imagine que um certo Rafael pediu um Playstation 3 e um Xbox. Uma
certa Marina, além da nova coleção de Monster High, quer trocar seu
/laptop/. Juliana, educadora há vinte anos, começa a preparar a festa do
dia das crianças em seu colégio, com bastante antecedência. Nada de
festinha mambembe, improvisada, como em sua infância. A clientela
contemporânea exige mais. Tem que ter tecnologia espalhada pelo pátio,
blog para estimular a interatividade durante a preparação, filmagem e
fotografia profissionais, quase uma superprodução.
*Pecado original*
Márcia e Pedro temem a chegada do 12 de outubro. O pequeno Bento lhes
foi retirado muito cedo, mal completou quatro anos. Observar a
barulheira gostosa das famílias passeando, ou almoçando nos restaurantes
aos domingos, tortura. Outro filho? Com certeza, mas fica um buraco, a
ausência do primogênito é insubstituível.
Conhecemos estas histórias. Gostando ou não, entendemos os códigos
que regem as interações. Nem sempre foi assim. Cada cultura constrói os
modelos que precisa para se desenvolver e, por sua vez, se orienta por
eles. É um processo dinâmico, em permanente transformação.
Voltemos ao “Antes”:
Quem diria que a imprensa e a literatura mostrariam no século 16 que a
infância acabava por volta dos sete anos?… “Perdi dois ou três filhos
com amas, não sem pena, mas sem aborrecimento”, comentou certa feita o
filósofo francês Michel de Montaigne. Mais ou menos na mesma época,
século 16, relatava uma pessoa da boa sociedade inglesa que “tendo
perdido dois de seus filhos, ainda lhe restava uma dúzia de treze”.
Irritada, a neta de /madame/ de Rambouillet lhe disse: “Ora esta, minha
avó, falemos de assuntos de Estado, porque eu já tenho seis anos.” É
provável que ela não estivesse brincando, pois a maioridade das mulheres
acontecia entre 11 e 14 anos, dependendo da época.
Apesar de nossa incredulidade ao lermos os comentários acima, uma
coisa é certa: eles fizeram parte da visão de mundo, e de si mesmos de
nossos antepassados. Apenas alguns séculos nos separam. Digo “apenas”,
pois do ponto de vista evolucionista não há diferença alguma entre nós e
eles. Culturalmente falando, entretanto, é como se vivêssemos em
planetas distintos. Esperar que um ser humano de dez anos se comportasse
como um adulto, não somente era comum, como normal. A criança era vista
como um adulto em miniatura, privado de razão, palavras, discernimento
e, por isto, merecedor de desconfiança, principalmente sempre que se
expressasse de forma espontânea. Tal imagem da infância explica, em
parte, a ausência de cuidados voltados para as necessidades da criança.
“A medicina foi bem pouco atenta à conservação das crianças, e isto por
indiferença e desconhecimento. (…) Milhares daqueles que poderiam se
tornar úteis à sociedade perecem, sem que ninguém se digne a olhá-los”,
critica o médico inglês, G. Buchan, no século 18.
Se retrocedermos mais ainda, e formos parar na época de Santo
Agostinho, veremos que ele descreve a criança como ignorante, apaixonada
e caprichosa: “Se deixássemos fazer o que lhe agrada, não há crime em
que não se precipitaria”, escreve Agostinho em /A cidade de Deus/. Para
ele, a infância é um forte testemunho da condenação pelo pecado
original, a evidência de como a natureza humana, corrompida, se
precipita para o mal. A dureza deste raciocínio talvez nos choque mais
do que as palavras de Freud chocaram nossos avós.
*De que criança estamos falando?*
O fato de que todos nós nascemos criança, e o seremos até um
determinado período é inegável, mas até quando e, sobretudo, quem é esta
criança, isto sim, é uma construção social definida por nós, adultos.
A criança vista como adulto em miniatura, presente na Europa por
tantos séculos foi mão de obra imprescindível em uma sociedade assolada
por guerras frequentes, epidemias dizimadoras, e alto índice de
mortalidade. Quem pudesse realizar qualquer trabalho, era destinado a
tal, o mais rápido possível. Esta necessidade, associada à visão
avassaladora da natureza humana como a personificação do mal, levou ao
combate dos instintos a todo o momento. Assim, fazia sentido ensinar
meninas, tão logo soubessem falar, frases como: “Lembremo-nos de nos
despojarmos do homem velho e de nos revestimos do novo. Reconheço meu
Deus, que a necessidade que tenho destas roupas é uma prova da corrupção
que herdei de meus pais”. A ocasião para tal fala, é quando trocavam de
roupa.
E se pudéssemos dar voz às essas crianças? É bem possível que elas
nos tivessem relatado situações bem diferentes da perspectiva do adulto.
No fim do século 18, Rousseau publica seu romance Émile, e com ele
começa a difundir a ideia de um ser humano essencialmente bom. Apesar do
livro ter sido proibido e queimado em Paris e Genebra, abriu caminho
para um outro olhar sobre a infância. “O homem nasce livre, e em toda a
parte é posto a ferros”, foi uma de suas mais famosas frases.Pouco a
pouco a criança foi sendo reconhecida como um ser em desenvolvimento,
com características e necessidades próprias. A ideia do pequeno adulto
nos parece hoje em dia, impensável.
Retrocedemos, avançamos? Qual a imagem de criança você perseguirá em
sua próxima matéria? Neste sentido, a pauta do 12 de outubro surge como
possibilidade para reflexões sobre a forma como entendemos e nos
relacionamos com a criança nos dias de hoje, como construímos o
sentimento de infância em nós e em nossas crianças.
* Psicóloga clínica, autora de Almagesto e Fios da memória
Fonte
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Maria Dulce de Lima, onde você mora ?
ResponderExcluirInteressantes Maria Dulce, gostaria de saber mais sobre seu filho. Pode me contar a história de vocês por email ? Aguardo no uadpd@americana.sp.gov.br
ResponderExcluirMuito bom, o artigo e suas reflexões. Mais ainda a questão levantada para refletirmos a infância de hoje.
ResponderExcluirCompartilhei! Abraços!