Estou na “Feira do Emprego” no bairro do Zanaga. Muito agito, filas de pessoas entregando currículos, empresas recebendo, música, sorteio de prêmios. De repente uma senhora de boné, cabelos brancos, vestido e algumas sacolas transbordando objetos de todo o tipo e bolsa com o querido batom (retocado de quando em quando), abraça o organizador, que fala ao microfone. Ela tem um apito pendurado em cordão, em seu pescoço.
E apita várias vezes, até todos pararem e olharem para a dupla. Recebe o microfone, um abraço, fala de Deus e chora. É suave, afável, se alguma pessoa elogia um objeto seu, pergunta sorrindo – “Quer?”. Valoriza mais a relação que o objeto. Mora em dois cômodos construídos pelas pessoas generosas do bairro, só com doações.
Tem um único vínculo familiar, um sobrinho, que surge em visita mensal para retirar contas a serem pagas e que cuida do dinheiro e dos documentos.
O primeiro marido se foi, depois de grande decepção infligida à Raquel, ainda de “dieta” de resguardo após o parto do segundo filho, provavelmente o disparo de seu quadro mental atual. Existem dois filhos, sem condição atual de proteger esta mãe, envolvidos em drogas. Aconteceu um segundo casamento, e outro filho, mas o contato com ambos se perdeu no tempo. Raquel anda muito, (já foi encontrada em município vizinho), talvez para ocupar o seu tempo, talvez para aplacar a ansiedade que a faz, muitas vezes chorar, gritar, apitar.
A medicação fica “por sua conta”, mora sozinha, come quando os vizinhos atendem seus pedidos de fome, lava a roupa quando ganha sabão, pede dinheiro e vende tudo o que ganha. Quando o sofrimento é muito intenso, fica internada em hospital. E gosta de morar assim? Confirma entusiasmada, comparando três locais em que já esteve internada e indicando com um largo sorriso qual o preferido. A internação dura períodos.
Reequilibrada, volta para a rua. Raquel é um caso escancarado da nossa omissão em saúde pública. Omissão federal, estadual e municipal, neste país inteiro. Raquel precisaria de internação contínua (leia-se colo contínuo), com equipe completa e preparada.
Os manicômios e asilos (praticamente extintos) precisariam ter sido substituídos por serviços externos de suporte técnico, para o doente e para a família, mas as equipes de atendimento existentes são menores que o necessário. Ou ainda poderia estar abrigada em “Residência Inclusiva”, compartilhando o espaço e equipe de apoio multidisciplinar e/ou cuidador com outros pacientes. Outro tipo de colo. Ela apita, ela chora com o seu apito. Quando vamos conseguir escutar?
Caso dolorosamente real. Nome real. Elizabeth Fritzsons da Silva, psicóloga e diretora da Unidade de Atenção aos Direitos da Pessoa com Deficiência, colaboradora do LIBERAL.
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