sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Nos subterrâneos da indústria farmacêutica

Escrito por  Quentin Ravelli (*)
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nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica-fotodestaqueViagem ao mundo do medicamento-mercadoria. A pesquisa submissa ao marketing. O trabalho infernal, nos laboratórios. A “eficácia das drogas atestada em estudos fraudados. Conduzida no âmbito de um doutorado em Sociologia, esta pesquisa durou quatro anos, durante os quais o autor foi contratado para vários cargos, por exemplo, o de estagiário nos serviços comerciais da Sanofi, operário nas fábricas do grupo etc.
“Percebi que estava grampeado, que sabiam exatamente o que eu receitava”, indigna-se um médico instalado em Paris. “Fui ingênuo, não fazia ideia. [Um dia], uma representante comercial me disse: “Você não prescreve muito!” Eu me perguntei: “Como ela pode saber disso?” Essa prática de vigilância, que choca muitos profissionais, é articulada pelos serviços comerciais dos laboratórios. Para aumentar ou manter sua fatia do mercado, os grandes grupos farmacêuticos implementam artifícios de engenhosidade mirabolante. Não hesitam, por exemplo, em alterar as indicações de seus medicamentos para conquistar novos clientes.
Considerado por certos médicos como “o Rolls Royce dos antibióticos dermatológicos”, a Pyostacyne (no Brasil, Pristinamicina), fabricado pela Sanofi – um dos primeiros grupos farmacêuticos do mundo em volume de negócios (33 bilhões de euros em 2013) – conheceu tal destino. Durante muito tempo de uso dermatológico, o antibiótico viveu uma “virada respiratória”: é agora utilizado maciçamente em casos de infecção broncopulmonar e de ouvido, nariz e garganta. Este último uso, criticado por numerosos médicos e depois denunciado pelo poder público, podia conduzir a um superconsumo de antibióticos, sendo assim parte do problema mais amplo do fortalecimento das resistências bacterianas – um grande desafio de saúde pública, responsável por setecentas mil mortes por ano em todo o mundo (ver “O outro pesadelo de Darwin“).
Para compreender a natureza versátil da mercadoria da indústria farmacêutica, acompanhamos a vida desse medicamento ordinário, desde os laboratórios de pesquisa até os visitantes comerciais, passando pela fábrica de produção do princípio ativo. A cada etapa, a mercadoria muda de nome: os biólogos falam da bactéria Pristinae Spiralis; os químicos, da pristinamicina fabricada pela bactéria; os representantes alardeiam os méritos da “Pyol” aos médicos; os trabalhadores denominam-na afetuosamente “a Pristina”. Ao longo dessa cadeia, o antagonismo entre as necessidades do doente e os lucros do industrial, entre o valor de uso e o valor de troca2 nunca param de se manifestar.
Ele expõe a oposição entre assalariados e executivos, particularmente sensível em uma empresa em plena reestruturação, onde os trabalhadores estão lutando para conter os cortes de emprego e impor suas próprias concepções do papel do medicamento.
Grande bloco todo de vidro de 37 mil metros quadrados, a sede da Sanofi na França evoca transparência e respeito aos pacientes, cujas silhuetas estilizadas dominam o alto do edifício, cercadas por um coração azul. No terceiro andar desse edifício situado no sul de Paris encontram-se os escritórios de marketing, onde agitam-se os funcionários que trabalharam, desde a década de 1990, na introdução da Pristinamicina no mercado de infecções respiratórias. Com êxito evidente, já que, do inverno de 2002 até o inverno de 2010, o número de vendas para infecções broncopulmonares saltou 112%, enquanto o aumento foi de apenas 32,6% no campo dermatológico.
Esse aumento não corresponde a uma explosão do número de doenças ou a uma epidemia devastadora, mas a uma estratégia comercial: o mercado de infecções respiratórias envolve um volume de prescrições muito mais importante que o de infecções dermatológicas. “Acontece que, contra os germes que infectam os brônquios, pulmões, seios da face, o medicamento vai muito bem”, diz um médico da empresa. “Por isso, em seguida ele foi desenvolvido com essa indicação.” Da pele ao pulmão, o valor de troca metamorfoseou o valor de uso.
Os ourives desse gênero de giro terapêutico são os “gerentes de produto”, funcionários especializados na promoção de um só medicamento ou de alguns medicamentos com indicações aproximadas. Aqui, se é “gerente de produto Pristinamicina”, “gerente de produto Tavanic”, “gerente de produtos analgésicos” e até mesmo “gerente de produtos psicóticos”. Célia Davos3, gerente de produto Pristinamicina, que se diz “muito voltada aos negócios”, descreve o conteúdo do seu ofício: “Seu trabalho é monitorar o desempenho do medicamento, é seguir seu produto para ver aonde ele vai, de acordo com os concorrentes, de acordo com o mercado, de acordo com a patologia, e fazer todos os esforços para maximizar o volume de negócios.” Esse posto, situado no coração do serviço de marketing, ele próprio no centro da sede social, funciona como uma mesa giratória onde os funcionários chegam de várias áreas e podem em seguida ser realocados para outros horizontes, como gerentes, responsáveis pelas áreas de marketing, comunicações, relações públicas, vendas.
O papel do gerente de produto consiste em destacar a utilidade de um medicamento na preparação do material dos propagandistas de laboratório, esses comerciantes que se deslocam pelos consultórios para convencer os médicos a prescrever seus produtos. No arsenal da Pristinomicina, encontram-se a ajuda de visita, espécie de guia a partir do qual o visitante constrói seu discurso segundo os argumentos elaborados pelo marketing; os elementos-chave, de informação médica, que sintetizam os pontos mais importantes; os números de uma revista científica como Infectologia, cujo patrono é a Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (Spilf) e que apresentam apenas os últimos resultados de ensaios clínicos bem sucedidos relativos à Pristinomicina. Mas também uma multidão de gadgets paramédicos – pequenas lâmpadas plásticas com uma espátula para pensar sobre o Pristinomicina, ao olhar o fundo da garganta do paciente; caixas de tecido para decorar o escritório do doutor; canetas Pristinomicina; pen-drive Pristinomicina. Esses textos e objetos, que se repetem por todo lugar no consultório do profissional, serão encontrados no porta-malas dos propagandistas.
Nem todos os médicos interessam aos laboratórios todos na mesma medida. Aqueles que têm um importante “potencial de prescrição” tornam-se objeto de atenção particular. Para identificá-los, os laboratórios utilizam os serviços do Grupo de Elaboração e Realização de Estatísticas (GERS), que dispõe das cifras das vendas aos distribuidores e das vendas diretas em farmácias; ou do Centro de gestão, de documentação de informática e de marketing (Cegedim), que fornece dados do software das prescrições dos médicas. A essas fontes oficiais, somam-se as redes de inteligência informais, como as enquetes dos visitantes médicos com farmacêuticos e seus colegas. Para os serviços de marketing, toda informação relativa às práticas dos médicos interessa, pois permite estabelecer uma “segmentação de clientes” em potencial. Assim, há os ”baixos ATB, baixos Pristinomacina” (os que prescrevem pouco antibiótico em geral, ou pouca Pristinomacina) e os “baixos ATB, altos Pristinomacina” (que já prescrevem abundantemente o produto promovido). Estes, serão menos visados que os “altos ATB, pequenos Pristinomacina” — pois podem substituir uma parte importante de suas receitas de outros antibióticos em receitas de Pristinomacina.
Leia a reportagem na íntegra Aqui     
(*)Quentin Ravelli, Le Monde Diplomatique. Tradução: Inês Castilho. Publicado no OutrasPalavras
http://www.portaldoenvelhecimento.com/pesquisas/item/3890-nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica

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