sexta-feira, 16 de março de 2012

SUPERAÇÃO: Entrevista com Rafael Nimoi


Dificilmente alguém lembra do que não vê. O ser humano está acostumado com uma enxurrada de cores, imagens e formas que ficam gravadas na memória, acessadas como lembranças. Com o radialista Rafael Nimoi, 25 anos, coordenador e produtor artístico da rádio CABOCLA FM, ocorre o contrário. Ele sonha com sons, sensações, texturas e formas. Mas antes de falar sobre isso vale a pena conferir um pouco sobre a vida de Nimoi: Trabalha em três rádios, uma emissora de TV, é publicitário graduado pela Unisal, técnico em áudio, especialista em áudio radiofônico e televisivo. Um currículo de causar inveja em muita gente. Filho de Nilma Maria de Jesus, possui dois irmãos e leva uma vida normal em Americana, só é um pouco atrapalhado. Às vezes cai em buracos e esbarra em coisas que ficam em sua frente. Porém ele não sente constrangimento algum quando isso acontece, “não tenho vergonha de cair em buracos”, brinca o radialista. Rafael Nimoi é deficiente visual, nasceu com glaucoma, foi perdendo a visão aos poucos, por esse motivo ele tem sonhos e recordações diferentes das outras pessoas. Tirando esse detalhe Nimoi é alguém normal, que apenas vê o mundo de maneira diferente.
Apesar de ser bem sucedido no que faz o radialista já sofreu com o preconceito, limitações, e teve que lutar desde pequeno contra a doença. Sua mãe, prevendo que o filho ficaria cego ensinou o alfabeto para ele já aos dois anos de idade. O fazia memorizar cores, formas e imagens para que ele lembrasse no futuro. Aos cinco anos de idade perdeu a visão. Atualmente ele não vê nada, apenas um “clarão branco”.
Abaixo você acompanha uma conversa com Nimoi, que fala sobre preconceito, superação, saudades e esperança. Já caiu nos buracos do convencionalismo e se ergueu; superou suas limitações; pagou micos como “achar que uma mulher era homem”, por que esta tinha voz grossa; passou por situações inusitadas, como ser guiado na rua por uma “muda”, e não saber porque ela não dizia nada. A entrevista pode ser dramática, engraçada, triste, ou motivadora, dependerá do ponto de vista, ou melhor, da maneira como o leitor sente a vida.

“Não tenho vergonha de cair em buracos”, diz deficiente visual





Rafael Silva | O Novo Jornal




O NOVO JORNAL: Como você perdeu a visão?
NIMOI: Eu perdi a visão aos cinco anos, mas eu já nasci com o problema. Na ocasião, minha mãe tentou se jogar do parapeito do hospital quando soube, através de médicos, que eu não enxergaria. Ela foi até o parapeito com pensamento de pular, só que ela colocou, na cabeça que isso atrapalharia a vida dela, que a partir daí ela iria ter muito mais forças para conseguir alcançar as coisas na vida. Minha mãe é batalhadora, já construiu duas casas sozinha. Minha mãe foi ‘fera’. Imagina, uma moça de 28 anos, com dois filhos e vindo mais um, só que cego. Acho que fica biruta mesmo (brinca).

O NOVO JORNAL: Você falou que com dois anos a sua mãe ensinou o alfabeto, como foi isso? Com essa idade eu já sabia o alfabeto. Ela me ensinou a escrever, montar silabas.

Ela previu minhas dificuldades e se adiantou. Mostrava as coisas para mim, para que eu soubesse cada coisa, cores, objetos, formas. Se antecipou. Com cinco anos eu perdi a visão. Tem uma tia minha que fala que minha mãe entrou em desespero quando viu que eu perdi a visão de vez.

O NOVO JORNAL: Quando começou a perda da visão?
NIMOI: Na verdade eu nasci com 40, 60 por cento de visão, fui perdendo o restante a partir dos cinco anos.

O NOVO JORNAL: Quais são imagens que você mais lembra? O desenho do pica-pau, do tio patinhas, lembro do apresentador Sérgio Chapelen, o comediante Costinha, Silvinho Santos. Lembro da novela Carrossel, que passava no SBT. Lembro de uma prima, com o olho pretinho, brilhante. Cabelo meio amarelo escuro acho que castanho. Não consigo formar a imagem do rosto dela.  

O NOVO JORNAL: Você enxerga vultos?
NIMMOI: Não, eu enxergo um pouco claridade. Se alguém estiver parado na minha frente eu percebo pelo ouvido, mas se tiver barulho no lugar eu trombo nela.

O NOVO JORNAL: Como você imagina as pessoas?
NIMOI: É uma pergunta que todo mundo me faz, mas eu não tenho a resposta, não sei falar, não consigo descrever. Eu conheço a fisionomia, o jeito da pessoa se ela é gorda, magra, baixa ou alta. Sei se a pessoa é baixa ou alta quando esta fica em pé e conversa comigo. Sinto mais ou menos a altura que ela está.

O NOVO JORNAL: Você sente vontade de tocar nas pessoas para saber como elas são? NIMOI: Não. Inclusive em uma outra rádio o diretor de operações, que tinha amizade comigo, fez eu colocar a mão no rosto dele para eu saber o jeito que ele era. Eu disse: “O caramba! Ou você é veado ou eu sou”, (risos). Isso é para você ter ideia de como tenho vergonha.

O NOVO JORNAL: Qual foi o pior mico que você já pagou?
NIMOI: Esse.

O NOVO JORNAL: E cair em buracos, errar lugares, se perder, são micos?
NIMOI: Isso não. Já chamei homem de senhora, mulher de senhor, por causa da voz. Tinha uma ‘velha’ que me ajudava na rua, tinha a voz muito grossa, parecia de homem, e eu chamava de senhor. Depois fiquei sabendo pela minha namorada, que a ‘velha’ era mulher. Já cai em buraco. Não tenho vergonha de cair em buracos – Eu não vejo, que o buraco ta ali. Capotei, vou fazer o que? Já era caiu, caiu (brinca).

O NOVO JORNAL: Você já sofreu discriminação por ser cego?
NIMOI: Já, muitas vezes.

O NOVO JORNAL: Que tipo de discriminação?
NIMOI: Para emprego. Quando em ligava em rádios para oferecer meus serviços e as pessoas não me conheciam, eu não fala que não enxergava, e as pessoas aceitavam. Quando percebiam que eu não enxergava, os ‘caras’ não davam crédito. Uma vez me disseram: “Você sabe por que o pessoal não te contrata, né? É porque você não enxerga”. Então eu perguntei para esse senhor: “E você me contrataria?” Ele respondeu, não, pois você não enxerga.

O NOVO JORNAL: Não enxergar é empecilho para conseguir trabalho?
NIMOI: Não é empecilho para ninguém. O que me deixa mais bronqueado é gente pedindo esmola em semáforo, gente que está bem das pernas, dos braços. Se o cara tem desvio na coluna ele é capaz de aprender a digitar e trabalhar em uma empresa. O preconceito começa na maioria das vezes da própria pessoa ser deficiente e ter preconceito com ela mesmo.

O NOVO JORNAL: Qual é a pior dificuldade que você enfrenta hoje?
NIMOI: É o preconceito, as pessoas não sabem como é a vida de um deficiente. Quando a gente pela rua dá para ouvir os outros dizendo: “coitadinho, não é capaz”. Por outro lado, as pessoas no meu trabalho não são assim. Estão tão acostumadas comigo que esquecem que eu não enxergo. Minha mãe esquece que sou cego. Minha namorada às vezes me manda pegar alguma coisa e aponta para mostrar, tenho que falar “onde está? Eu não enxergo”. Minha mãe quando vai trabalhar acena para mim (risos).

O NOVO JORNAL: Já se revoltou alguma vez por ser cego?
NIMOI: Sim. Sabe esses pastores que falam, “venha aqui, Jesus vai te curar”. Planejei ir em uma igreja e falar: “Se o senhor é pastor eu quero ver você me curar. Estou desesperado, preciso de emprego e não consigo porque sou cego. O que o senhor vai fazer?”. Eu estava tão desesperado que ia gravar e promover um vídeo sobre isso, para ver se sensibilizava alguém e conseguiria emprego. Mas mudei de ideia.

O NOVO JORNAL: Porque mudou de ideia?
NIMOI: Minha mãe e a minha namorada me colocaram nos eixos.

O NOVO JORNAL: Falando em religião, e essas cura que as igrejas oferecem, você acredita nisso?
NIMOI: Não. Não acredito que um pastor num mundo de hoje tenho poder disso. O que cura a pessoa é a fé dela.

O NOVO JORNAL: Como você imagina o mundo? Você visualiza uma imagem das coisas?
NIMOI: Não tem como visualizar uma imagem o que nunca vimos. Recordo apenas das cores. Se você me falar que essa sala é azul eu consigo imaginar a cor, as coisas que tem nela, os objetos e formas, mas como se eu estivesse tateando a sala, não como se eu estivesse vendo. Muitas coisas eu imagino assim, pelo formato.

O NOVO JORNAL: Você enxerga tudo escuro?
NIMOI: Não, eu vejo tudo claro, até a noite. Eu consigo ver se alguma luz esta acesa às vezes. Vejo luz de carro, claridade, só não consigo imaginar as imagens, vejo tudo praticamente branco com algumas manchas de luz.

O NOVO JORNAL: Qual é o pior cego?
NIMOI: É o cara que vê com os olhos e não sente com o coração. Somos feitos de emoção, se agente só vê, a gente não sente.


O NOVO JORNAL: E as piadas de cego?
NIMOI: Antigamente eu não gostava. Depois que eu conheci a Isabela, minha namorada, o Geraldo Magela [comediante com deficiência visual] que o meu preconceito comigo mesmo caiu.

O NOVO JORNAL: O que você aprendeu com o Geraldo Magela?
NIMOI: Eu aprendi com o Magela que sou assim mesmo, e nada vai me mudar. E sabe de uma coisa, não enfrento nenhuma instituição que lida com deficiente, pois os próprios deficientes tem preconceito entre eles. E cego tem um preconceito que não pode namoral uma moça normal, um moço normal, eles se juntam no meio deles e formam uma sociedade paralela. Eu não, gosto de estar no meio do preto do branco, do brasileiro, do japonês, não tenho distinção de pessoas. Graças a Deus que eu não vejo, porque, eu não faço distincição de raça, cor, deficiência. E as pessoas que não enxergam, ficam nesse grupo, se fecham entre eles.

O NOVO JORNAL: Como o cego namora? É em braile, tem que ir apalpando tudo?
É normal, as vezes eu coloco a mão no rosto da Isabela e sei que ela está sorrindo, pelo barulhinho da boca. Vou pra festa, balada é tudo normal. Não tem diferença.

O NOVO JORNAL: Como você se imagina?
NIMOI: Um cara feio carruncudo. Não sei (risos), eu lembro que sou meio moreno, tinha os olhos azuis. Acho que tenho cara de moleque.

O NOVO JORNAL: Como você decora caminhos e lugares por onde passa?
NIMOI: Todo caminho tem ondulação na rua, buracos, a geografia tem seus sobes e desce. A minha cabeça decora automicamente o relevo das coisas.

O NOVO JORNAL: Como você sabe se algo é bonito ou feio?
NIMOI: Tenho que perguntar para os outros. É como se fosse uma pesquisa, se duas ou três pessoas que falam que é bonito, então é bonito.

O NOVO JORNAL: Como você conquistou sua namorada?
NIMOI: Acho que pelo meu jeito de ser. Sou um cara muito romântico, ou talvez ela tenha se apaixonado pela história de vida, a nossa amizade. Ela era uma menina muito séria, não ficava com ninguém, então eu comecei a gostar e falava dessas qualidades para ela. Nós conversávamos muitos. Depois de uma semana conversando pedi ela em namoro. Nosso primeiro beijo foi um mês de namoro.

O NOVO JORNAL: E como ela te conquistou?
NIMOI: Ela era uma menina muito séria, muito na dela. Gostava da voz dela. Com o tempo percebi que ela era romântica, inteligente, estudiosa, então essas coisas foram juntando. Percebi que ela era melhor do que eu imaginava.

O NOVO JORNAL: Como você se alimenta sozinho, por exemplo, quando vai em restaurantes?
NIMOI: Como normalmente. Quando vou em restaurantes eu peço para alguém me servir. Em casa eu prefiro que minha namorada ou minha mãe me sirvam, pois não tenho paciência para ficar medindo o peso da comida no prato. Elas sabem a quantidade que eu como.

O NOVO JORNAL: Como foi andar na praia pela primeira vez?
NIMOI: Na primeira vez não lembro muito bem, parecia mais um sonho, eu estava meio deprimido. Na segunda fui sem preocupação nenhuma, feliz, eu me arrepiava. Na rodoviária eu sentia aquela brisa, a maresia, Ficava ouvindo o barulho do mar. Na hora de andar de balsa sentia o balanço das ondas, que coisa de louco eu me arrepiava sentindo aquilo. É uma coisa de louco, é inexplicável.

O NOVO JORNAL: Como são seus sonhos?
NIMOI: Iguais ao que vivo diariamente. Tem sons e sensações, formas, só imagem que não. Uma vez com muito esforço eu criei, num sonho, a imagem do rosto da Isabela.

O NOVO JORNAL: Qual imagem você mais sente saudade?
NIMOI: Sinto falta de ver a natureza, árvores, mato, passarinhos, vacas.

O NOVO JORNAL: Se você pudesse ver agora, o que faria?
NIMOI: Se eu enxergasse agora, eu catava uma bicicleta, iria daqui até Americana só para ver minha mãe, a Isabela e minha irmã, as três mulheres da minha vida.

O NOVO JORNAL: Qual é o seu maior sonho?
NIMOI: Ter minha casa, casar e ter filhos.

O NOVO JORNAL: Para finalizar, o que a sociedade pode melhorar em relação ao trato com os deficientes?
NIMOI: Se tivesse uma aula explicativa, de conscientização seria bom. Hoje temos religião, educação sexual, porque não ensinar algo sobre o preconceito nas salas de aula? 

FONTE: O Novo Jornal, Arthur Nogueira. Rafael Silva


 

Entrevistamos o produtor artístico da Rádio Cabocla, Rafael Nimoi, que não enxerga desde os cinco anos. De maneira descontraída ele falou sobre preconceito, superação e outras coisas da vida.

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