“É bonito beijar crianças e adultos visivelmente deficientes. É um bom exemplo. Mas os católicos (e não católicos) com deficiência precisam de uma mudança sistemática para poderem ser tratados como membros de pleno direito da Igreja e como membros de pleno direito da humanidade”, escreve David M. Perry, professor de história na Dominican University, de Illinois, e jornalista na área dos direitos das pessoas com deficiência, em artigo publicado por Crux, 14-06-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Certamente esta não é a mensagem buscada pelo Papa Francisco, mas às vezes ele parece, sem querer, tratar as pessoas com necessidades especiais como um espetáculo, com beijos públicos e bênçãos. As pessoas com necessidades especiais precisam mais, em termos tanto de acesso à Igreja como de inclusão nela.
No último domingo, Francisco conduziu uma missa na Praça de São Pedro centrada nas pessoas deficientes e na necessidade de construção de uma sociedade mais inclusiva. O evento destacou histórias de pessoas com deficiência, teve a participação de coroinhas com síndrome de Down e uma leitura feita por uma jovem cega. Contou ainda com tradução em linguagem de sinais.
Em um discurso preparado, o papa advertiu os padres contra a retenção dos sacramentos às pessoas com deficiências mentais.
Um evento assim soa como um bom começo. Para servir eficazmente as pessoas com necessidades especiais, os líderes da Igreja Católica precisam encontrar meios de empoderar pessoas deficientes a ocuparem papéis ativos no dia a dia.
Desde que o Francisco se tornou papa, tenho acompanhado a maneira como ele tem se engajado nessa questão, tanto em seus escritos quanto no seu tratamento a deficientes como um espetáculo em suas aparições públicas. Este segundo caso me incomoda de um modo especial.
Há uma longa história de pessoas com deficiência servindo apenas como uma oportunidade para outras pessoas sem deficiência demonstrarem a sua devoção através do serviço, um “modelo de caridade” bonito, mas que, no final, promove a exclusão.
Líderes religiosos são especialmente propensos a endossar este modelo de caridade por meio de palavras ou ações.
Eis alguns exemplos de atos perfeitamente bons que receberam cobertura da imprensa mundial, mas que parecem não terem levado a nenhuma mudança substancial no modo como a Igreja empoderou pessoas com deficiência.
• O Papa Francisco beijou recentemente um menino americano portador de deficiência em Roma enquanto celebrava a missa de Páscoa.
• O Papa Francisco beijou uma criança deficiente na Filadélfia durante a sua visita de 2015 aos EUA.
• Em 2013, Francisco chamou a atenção da imprensa mundial para a imagem dele pausando para colocar suas mãos sobre o rosto fortemente descaracterizado de um homem com neurofibromatose.
• Na sua posse, Francisco desceu do papamóvel para beijar e embalar a cabeça de um homem com deficiência.
Há inúmeros casos deste tipo. Nem todos envolvem beijar, mas o espetáculo da bênção pública é o que gera a cobertura por parte da imprensa.
O pontífice não é responsável por quem vem à frente para receber a sua bênção, mas acabou ficando claro, quase um hábito, que ele irá parar o que está fazendo para dar atenção a pessoas com deficiência. A imprensa publica fotos e histórias com a narrativa que o Papa Francisco é especialmente devoto porque ministra aos menos capacitados, os mais necessitados de piedade.
Com certeza não é esta a mensagem pretendida pelo papa, mas é a consequência de tratar estas pessoas como um espetáculo.
Conforme escrevi para o sítio Crux, a recente carta papal Amoris Laetitia confirma o lugar proeminente do modelo caritativo de pessoas deficientes dentro do Vaticano. O citado documento descreve o indivíduo com necessidades especiais como passivo, necessitando de amor e cuidado dos outros, mas não o vê como assumindo um papel ativo na sociedade na qualidade de pais, trabalhadores ou mesmo de cuidadores eles próprios.
Escrevi: “Estou surpreso pela visão estreita presente no texto a respeito dos deficientes e pelas barreiras que ele impõe entre as pessoas deficientes e os demais membros familiares não deficientes. Onde se encontra a mensagem papal aos filhos deficientes sobre como eles poderiam responder às suas famílias? E mais: onde estão os pais portadores de deficiência?
O evento de domingo não responde a estas perguntas, mas mostra um caminho para o desenvolvimento de uma prática mais robusta em direção à inclusão ativa.
Isso, porém, só vai acontecer se o evento levar a dois tipos diferentes de mudança estrutural.
Em primeiro lugar, a acessibilidade tem sua importância. Depois da posse do Papa Francisco, Lenny Davis, importante pesquisador na área das pessoas com necessidades especiais, reagiu à bênção durante o início do ministério pontifício de Francisco dizendo: “Se o Papa Francisco quer ‘ajudar’ as pessoas com deficiência, terá que abandonar o seu hábito de beijar e abençoar estas pessoas. Em vez disso, deve tornar acessíveis todas as igrejas – não apenas arquitetonicamente, mas também em termos práticos de forma que os cegos e surdos possam participar e acompanhar os serviços religiosos. Ele teria que abrir o clero a todos os tipos de pessoas, inclusive a padres com deficiência”.
Esse convite a todos os tipos de acessibilidade continua a ser importante hoje. Existem alguns padres autistas, por exemplo, mas também existem histórias de que indivíduos com deficiência são aconselhados a não darem continuidade à vocação sacerdotal.
Em segundo lugar, a inclusão tem de ser um empreendimento diário. Construímos espaços inclusivos não através da realização de eventos especiais em que os não portadores de deficiências permitem que as pessoas com deficiência participem, e sim através da construção de ambientes totalmente integrados, nos quais todos têm acesso tanto quanto for possível.
Com David Gayes, ex-aluno com quem frequentemente discuto a questão das pessoas com necessidades especiais e catolicismo, falei sobre as suas experiências com a inclusão. Ele me disse que “domingos inclusivos” são bastante comuns na comunidade católica de Chicagoland.
Ele admitiu: “Tenho as minhas reservas quanto a estes eventos. Quando as pessoas com deficiência são passivas, é horrível. Mesmo quando as pessoas com deficiência recebem um papel ativo as coisas podem dar errado”.
“Da mesma forma como vemos em outras iniciativas, aqui algumas pessoas pensam: ‘Bem, nós as incluímos. Conseguimos. No próximo ano, vamos incluí-las de novo”, disse Gayes.
Eventos que buscam a conscientização podem ser um primeiro passo, porém Gayes quer ver a Igreja lutar por algo mais universal. “O que precisamos é de uma plena pertença em todas as celebrações e em todos os programas da Igreja”, disse ele. “Precisamos de uma integração plena que se baseie no respeito aos dons, talentos e contribuições de cada membro da comunidade”.
O que acontecerá depois da missa especial desse domingo? O Vaticano poderia mostrar uma enorme liderança levando a Igreja a se afastar do modelo caritativo de pessoas deficientes e aproximando-a do modelo que os ativistas e estudiosos chamam de o “modelo social”.
No modelo social, nós respondemos à deficiência criando sistemas e culturas que são radicalmente inclusivos, de modo que os indivíduos não estejam incapacitados por falta de acesso ou estigma.
É bonito beijar crianças e adultos visivelmente deficientes. É um bom exemplo. Mas os católicos (e não católicos) com deficiência precisam de uma mudança sistemática para poderem ser tratados como membros de pleno direito da Igreja e como membros de pleno direito da humanidade.
Esse trabalho, até onde posso ver, está apenas começando.
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