Em seu discurso, o Papa fustigou: “É paradoxal que as ajudas e os planos de desenvolvimento sejam obstaculizados por visões ideológicas enviesadas, ao passo que as armas circulam com uma liberdade quase absoluta”.
A reportagem é de Elena Llorente e publicada por Página/12, 14-06-2016. A tradução é de André Langer.
Para lutar contra a fome necessita-se de “sonhadores” e não de burocratas, nem de pessoas que veem a fome como algo “natural” porque ela existe em todas as partes. Porque as notícias mudam, mas “a fome e a sede seguem existindo”. E seguem existindo porque “as guerras e as ameaças de conflito predominam nos nossos interesses e debates” e as armas “adquiriram uma preponderância inusitada” para resolver os contrastes e possam “circular com total liberdade”, ao passo que as ajudas humanitárias e os planos de desenvolvimento “se veem obstaculizados por intrincadas e incompreensíveis decisões políticas”.
O Papa Francisco foi claro e contundente ao falar, nesta segunda-feira, na abertura da sessão anual da Junta Executiva do Programa Mundial de Alimentos (PMA), organismo vinculado às Nações Unidas e cuja sede mundial encontra-se em Roma. Ao chegar ao local, alguns minutos antes do horário previsto, parou para render uma homenagem diante do Muro da Memória, onde aparecem os nomes de todas as pessoas que perderam sua vida trabalhando para o PMA no mundo. Também deixou ali duas cestas com flores.
É a primeira vez que um Pontífice visita a sede do PMA, que, talvez, seja o organismo ONU de Roma ao qual menos importância dão, em geral, os líderes internacionais que passam pela capital italiana, ao contrário da FAO(Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e do FIDA (Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola). No entanto, o PMA é a maior agência humanitária do mundo, com 13.500 funcionários que assistem a aproximadamente 90 milhões de pessoas em 80 países. Em 2015, o PMA deu assistência alimentar a cerca de 90 milhões de pessoas em 81 países, entre eles alimentos para as escolas onde estudavam cerca de 16 milhões de crianças. Também em 2015 deu assistência alimentar para cerca de seis milhões de refugiados e para quase 17 milhões de refugiados internos.
Em seu discurso à Junta Executiva Francisco começou apontando contra o “mundo interconectado e hiper-comunicativo em que vivemos”. “Temos a possibilidade de contato quase simultâneo com o que acontece no outro lado do planeta. Graças às tecnologias da comunicação, aproximamo-nos de muitas situações dolorosas; e tais meios podem ajudar (e têm ajudado) a mobilizar para gestos de compaixão e solidariedade. Paradoxalmente, porém, esta aparente proximidade criada pela informação, vemo-la diluir-se dia após dia. O excesso de informação de que dispomos gera gradualmente a habituação à miséria; ou seja, pouco a pouco tornamo-nos imunes às tragédias dos outros, considerando-as como qualquer coisa de ‘natural’; em nós gera-se – desculpem-me o neologismo – a ‘naturalização’ da miséria. São tantas as imagens que nos invadem onde vemos o sofrimento, mas não o tocamos; ouvimos o pranto, mas não o consolamos; vemos a sede, mas não a saciamos. Assim, muitas vidas passam a fazer parte de uma notícia que, em pouco tempo, acabará substituída por outra. E, enquanto mudam as notícias, o sofrimento, a fome e a sede não mudam, permanecem. (...) É necessário ‘desnaturalizar’ a miséria, deixando de considerá-la como um dado entre muitos outros da realidade. Por quê? Porque a miséria tem um rosto. Tem o rosto de uma criança, de uma família, de jovens e idosos”.
Também recordou que quando visitou a FAO por ocasião da 2ª Conferência Internacional sobre Nutrição de 2014,falou das “graves incoerências que estávamos chamados a considerar pelo fato de haver comida suficiente para todos, mas nem todos podem comer, enquanto o desperdício, o descarte, o consumo excessivo e o uso de alimentos para outros fins estão diante dos nossos olhos”. “Fique claro que – destacou na segunda-feira em seu discurso – a falta de comida não é uma coisa natural, não é um dado óbvio nem evidente. O fato de hoje, em pleno século XXI, muitas pessoas sofrerem deste flagelo deve-se a uma egoísta e má distribuição dos recursos, a uma ‘mercantilização’ dos alimentos”. Também criticou “o consumismo”, que “nos induziu a habituar-nos ao supérfluo e ao desperdício diário de comida, a que, por vezes, já não somos capazes de dar o justo valor e que se situa para além de meros parâmetros econômicos. Far-nos-á bem recordar que o alimento desperdiçado é como se fosse roubado à mesa do pobre, de quem tem fome”.
E referindo-se à guerra, contra a qual sempre tem algo a dizer, porque deseja que os conflitos sejam resolvidos pela via pacífica, Francisco indicou que “nos tempos recentes, são as guerras e as ameaças de conflito o que predomina nos nossos interesses e debates. E assim, perante a diversa gama de conflitos existentes, parece que as armas tenham adquirido uma preponderância de tal modo fora do comum, que acantonaram totalmente outras maneiras de solucionar as questões em conflito. (...) Encontramo-nos assim perante um fenômeno estranho e paradoxal: enquanto as ajudas e os planos de desenvolvimento se veem obstaculizados por intrincadas e incompreensíveis decisões políticas, por tendenciosas visões ideológicas ou por insuperáveis barreiras alfandegárias, as armas não; não importa a sua origem, circulam com uma liberdade – perdoem-me o adjetivo – jactanciosa e quase absoluta em muitas partes do mundo. E assim alimentam-se as guerras, não as pessoas”.
Francisco convidou os membros do PMA e o mundo inteiro para não deixar-se anestesiar por frases como “Não se pode enfrentar tantas tragédias”, porque, disse, “as “populações mais frágeis não só padecem os conflitos bélicos, mas ainda veem travado todo o tipo de ajuda”. Também destacou o trabalho realizado pelo PMA em todo o mundo, apresentando-o como um exemplo de como se pode trabalhar “para erradicar a fome através de uma melhor atribuição dos recursos humanos e materiais, fortalecendo a comunidade local”. “Acreditem naquilo que fazem e continuem a fazê-lo com entusiasmo, que é o modo como pode germinar com força a semente da generosidade. Permitam-se o luxo de sonhar. Necessitamos de sonhadores que façam avançar estes projetos”, concluiu Francisco seu discurso aos representantes do PMA, assegurando, além disso, o completo apoio da Igreja católica ao plano “fome zero” que o PMAse propôs a conseguir até 2030.
Acompanhado pelo virtual primeiro-ministro vaticano, ou seja, o secretário de Estado vaticano, cardeal Pietro Parolin, entre outros, o Papa, depois dos aplausos e saudações, dirigiu-se a um dos jardins do prédio onde o esperavam os funcionários e suas famílias. Francisco havia preparado dois discursos, um oficial, que leu na presença da Junta Executiva presidida pela norte-americana Ertharin Cousin, e o segundo, dirigido aos funcionários e seus familiares com quem se encontraria em um dos pátios do prédio.
Mas, como faz com frequência, entregou o segundo discurso sem tê-lo lido e improvisou eloquentemente na presença dos funcionários, muitos dos quais estavam com crianças pequenas nos braços. “A primeira coisa que quero dizer a vocês no meu limitado italiano é obrigado, obrigado, porque vocês fazem o trabalho dos bastidores, que não se vê mas que torna possível que tudo saia a contento. Ninguém sabe os nomes de vocês, mas vocês tornam possível este grande trabalho, a luta contra a fome”, disse o Pontífice. E acrescentou: “nunca esqueceremos os nomes dos caídos em missões. Mas eles puderam fazer seu trabalho por sua coragem e pela fé que tinham em seu trabalho, mas também porque vocês estavam aqui”.
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