quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Curados no ventre (reversão da mielomeningocele durante a gravidez)


A pesar do sucesso do parto pré-maturo, dos 45 centímetros e dos 2,6 quilos do recém-nascido, o publicitário Guilherme Wiering entrou apreensivo na UTI neonatal do Hospital e Maternidade Santa Joana, em São Paulo, para visitar o filho Miguel. "Parei, olhei para ele dentro da incubadora e, quando coloquei minhas mãos sobre seu corpo, Miguel levantou as perninhas. Foi uma emoção indescritível", lembra o pai. Três meses antes, durante um ultrassom de rotina, ele e a mulher, Karen, descobriram que Miguel era portador de mielomeningocele, doença caracterizada pela mal formação da medula espinhal cujas principais sequelas são a hidrocefalia (acúmulo de liquor no cérebro) e a paralisia das pernas. No caso do bebê dos Wiering, no melhor dos prognósticos, ele teria os pés tortos. No pior, além de não andar, seria incapaz de controlar a urina e teria certo retardo mental. Mas hoje, com quase 4 meses, Miguel não só mexe as pernas, como seus pés são perfeitos e os exames neurológicos, normais. As imagens de ressonância magnética mostram, ainda, que o sistema urinário funciona bem. "É como se meu bebê não tivesse tido nenhum problema", comemora Karen.
A boa saúde de Miguel é fruto de um dos mais extraordinários avanços da medicina: a cirurgia fetal a céu aberto para a correção da mielomeningocele. Trata-se de uma operação extremamente delicada. "Para realizá-la, é necessário tirar o útero e parte do feto para fora do corpo da mãe, corrigir o defeito e, então, deixar que a gestação siga seu curso", diz o cirurgião fetal Antonio Femandes Moron, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um dos precursores da cirurgia no Brasil. A operação é realizada entre a vigésima e a 26" semana de gestação, quando o fero pesa entre 500 e 900 gramas. Antes desse período, a doença raramente é diagnosticada por qualquer exame. Depois dele, o risco de que os efeitos da malformação sejam irreversíveis é altíssimo.
No Brasil, a mielomeningocele afeta um a cada 1000 bebês nascidos vivos o que representa, em números absolutos, 3000 crianças todos os anos. A doença está associada a alterações genéticas e a baixos níveis de ácido fólico no organismo da mãe no momento da concepção e durante as primeiras doze semanas de gravidez. Por mecanismos ainda não completamente desvendados, no início da formação do embrião, há um descompasso entre o desenvolvimento dos tecidos nervoso e ósseo. O resultado é que a medula espinhal fica exposta numa bolsa repleta de liquor, fora do organismo do feto. Essa anomalia provoca o deslocamento do cérebro e favorece o acúmulo de liquor também no crânio o que faz com que a criança, além de todos os comprometimentos motores e cognitivos, tenha uma cabeça grande.
Até pouco tempo atrás, a única possibilidade de tratamento da mielomeningocele era a cirurgia realizada horas depois do nascimento. O grande problema é que, nesse caso, como permanece exposta ao líquido amniótico durante a gestação, a medula pode ser lesionada. Além disso, pela técnica tradicional, na imensa maioria dos casos, é necessário implantar um válvula no cérebro que drena o liquor para a cavidade abdominal, de modo a controlar a hidrocefalia (o líquido continua a ser produzido ininterruptamente). O dispositivo não só é uma porta aberta para infecções, como tem de ser trocado, em média, quatro vezes ao longo da vida.
Realizado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1997, esse tipo de cirurgia fetal a céu aberto surgiu como uma m~eira de preservar a medula e evitar o implante da válvula. No Brasil, foram feiras oito operações entre 2002 e 2003. Em uma delas, o fero morreu durante a cirurgia. Duas crianças acabaram precisando da válvula. As outras cinco tiveram o problema corrigido. Apesar dos bons resultados, em 2003, a técnica foi colocada sob suspeita. Acreditava-se que os riscos (aborto e parto prematuro, principalmente) superavam os beneficios. Foi então que se deu início ao estudo americano Moms (sigla para Management of Myelomeningocele Study, que em português significa "Mamães"). A ideia era comparar os resultados de 200 cirurgias, metade feita depois do nascimento, metade ainda durante a gestação. O trabalho foi interrompido no ano passado com 183 operações e seus resultados publicados em março na revista científica The New Ellgland Joumal o.f Medicine. "Os pesquisadores chegaram à conclusão de que os benefícios da intervenção durante a gravidez eram realmente superiores aos da técnica pós-parto", diz o professor titular de neurocirurgia Sergio Cavalheiro, também da Unifesp. Dos fetos operados, 40% precisaram da válvula de drenagem depois do nascimento - metade do índice registrado pelas crianças tratadas depois do nascimento. Desde a retomada da cirurgia fetal a céu aberto no Brasil, em abril deste ano, oito gestantes passaram pelo procedimento. Karen, mãe de Miguel, foi a segunda delas.

Fonte: Revista Veja – Saúde – Ed. 2242 / Ano 44 / nº 45 (09 de novembro de 2011)

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