Deficiência mental: E quando crescem?
Depois dos 18 anos, é o vazio de apoios do Estado lamentam os pais dos deficientes mentais adultos. Descida ao mundo de quem vive atormentado com o dia em que não poderá mais ajudar os filhos
‘Ó mãe, o que é ser deficiente?” A pergunta chegou um dia e Ana sentiu que lhe tiravam o tapete debaixo dos pés. Ali estava o seu filho, um miúdo ainda, a fazer-lhe a terrível pergunta. Ficou sem palavras. Mas não foi a única vez. As histórias vêm-lhe à memória, umas atrás das outras, e Ana conta-as de forma quase ininterrupta. “Outro dia, ao fim da tarde, parados no trânsito, perguntou-me: ‘Ó mãe, onde mora o Sol?’ Enquanto pensava no que responder, ele antecipou-se: ‘Já sei, mora no pôr!’”
A vida de Ana Martins, 50 anos, e Pedro Ladeira, 24, é cheia de momentos destes e, se é verdade que hoje já se fala de autistas como não se falava antes, é também certo que é sempre dos pequeninos. “Dos crescidos, não. E eles crescem”, sublinha, como início de conversa. Sempre que saem à rua, acabam por dar nas vistas. “Uma vez, tínhamos ido a um supermercado, eu trazia os sacos e ele vinha atrás. De repente, oiço um burburinho e quando me viro, apercebo-me de que tinha cuspido no vidro de um carro, com o senhor lá dentro. Na altura o Pedro tinha uns 16, 17 anos e eu desfiz-me em desculpas. Era um carro igual ao de uma professora de quem ele não gostava muito.”
Pedro viveu com a mãe até aos 18 anos, enquanto teve direito a estar na escola. “No fim da escolaridade obrigatória, fiquei presa em casa”, recorda Ana, que acabou por perder o emprego. O pior foi o filho ter-se tornado agressivo, pouco depois dos 16 anos, quando percebeu que nunca conseguiria tirar a carta, logo ele que é doido por carros.
“É um autista atípico, porque alia o défice cognitivo a uma grande inteligência, não entende porque não consegue fazer. Passa a vida a repetir que gostava de ser natural, como quem diz, normal”, explica a mãe. A agravar a situação, durante os ataques, parte tudo. “Na cabeça dele, sou uma espécie de terceiro braço, o mais funcional. Quando algo corre mal, a culpa é minha, porque não resolvi.”
Ana acabou por interná-lo durante os dias de semana, no centro da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA), uma decisão que vinha a amadurecer, enquanto lhe crescia no peito a sensação de que ou morria um ou morria o outro. “Às vezes, atirava-me ao chão e batia com a minha cabeça na pedra. Ou dizia que se atirava pela janela. Ou olhava para mim: ‘Não, vou é atirar-te a ti.’” Há mais histórias, muitas mais, todas deste género. “Tirando isso, é um miúdo encantador. Se vê que alguém precisa de ajuda, vai a correr. Só que, a qualquer momento, tudo pode mudar.”
A vida complicou-se com o desemprego de Ana, em 2009, e começaram a acumular-se as dívidas à APPDA. Desesperada, por sentir que o filho melhorou muito desde que ali passa os dias de semana, lançou no Facebook, no início de abril, a campanha Vamos Ajudar Pedro e Ana, na qual conta a sua história e pede ajuda para pagar as prestações do centro. Do Estado, não recebe qualquer apoio um drama partilhado por muitas famílias com deficientes adultos a seu cargo.
Reabilitar, não depositar
“É difícil, muito difícil. Mas não podemos baixar os braços”, insiste Maria Antónia Machado, 70 anos, mãe de três filhos, o mais velho com Trissomia 21. É também a presidente da CEDEMA Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Mentais Adultos, que inaugurou, recentemente, o lar Telhadinho, em Odivelas. O espaço tem capacidade para 34 pessoas, já recebeu 20, há 300 em lista de espera. Maria Antónia confirma a experiência de Ana Martins: “As pessoas dão atenção aos deficientes mentais quando são crianças. Depois, ninguém lhes liga.” A sua vocação surgiu com a síndrome do filho mais velho. “Hoje, posso dizer que foi a melhor coisa que me aconteceu.” Na cabeça de Maria Antónia, o ideal é que, com técnicos e supervisão, cada um vá construindo a sua autonomia. A filosofia é simples: reabilitar, não depositar. “Isto é a casa deles não é um gueto. Não os queremos a olhar para as paredes.” Além da fisioterapia, há uma série de ofi cinas, no centro e fora dele, para que a inclusão na comunidade seja o mais verdadeira possível: as carrinhas saem para os levar às aulas de natação no gimnodesportivo municipal e ao grupo de teatro de uma coletividade das redondezas. No resto do tempo, preparam o Festival dos Sentidos, que decorre, de dois em dois anos, no Centro Cultural da Malaposta, onde expõem os seus trabalhos artísticos.
“Queremos mostrar-lhes que há vida lá fora”, continua Maria Antónia, enquanto nos guiapelo espaço, cumprimentando todos pelo nome. O seu filho é uma espécie de case study e a prova de que é possível: aos 47 anos, António Machado está a trabalhar numa tipografia, joga golfe e é atleta do Special Olympics, organização internacional criada para apoiar as pessoas portadoras de deficiências intelectuais, um movimento lançado por Eunice Kennedy, impulsionada pelo caso da irmã, deficiente mental. “Interná-lo? Espero que não seja necessário. O ideal para todos era que lugares como este fossem apenas de passagem.”
O lar ainda dá os primeiros passos, mas a intenção está lá e isso vê-se nos sorrisos de Jacinto e Ricardo, a prepararem um espanta-espíritos com material reciclado, ou das gémeas Fernanda e Leonor, em frente dos quadros que pintaram. “Não podemos continuar a olhar para o lado”, frisa Maria Antónia Machado. “Até porque 2% da população tem deficiência mental.”
Pela autonomia e responsabilidade
Luísa Beltrão, 70 anos, está do mesmo lado da barricada. Quando soube que a filha mais nova tinha deficiência, isso tornou-se uma missão já era mãe de outros seis, todos com o seu projeto de vida. “A minha filha Luísa não, apesar dos seus 34 anos, por causa de um atraso global no desenvolvimento.” A mãe arregaçou as mangas e, há dez anos, criou o Quinta Essência, projeto de Reabilitação para a Pessoa com Deficiência, que tem umas belas instalações em Sintra, na ideia de criar condições para que pudessem viver na sua casa e em relação com a comunidade.
A jovem Luísa foi, claro, a primeira a beneficiar do espaço, mas a aposta na autonomia nunca avançou e a fundadora acabou por tirar de lá a filha.
“O problema é que, enquanto continuar assim, estas pessoas não fazem parte do nosso mundo. Por exemplo, não se veem deficientes na rua. As crianças ainda vão à escolas mas os adultos estão fechados.
E eu não queria isso para a minha filha. Sei que vai ser sempre dependente, mas gostava que fosse o mínimo possível: um deficiente não é um doente.” Luísa sabe que a legislação prevê que se possa viver na comunidade mas na prática anda-se a marcar passo.
“É tão ridículo como o Estado gastar 600 euros por deficiente se ele estiver internado em instituições mas só lhe atribuir metade dessa verba se quiser ficar em casa”, aponta.
Foi a pensar nesse novo modelo que criou a associação Pais em Rede, que já tem 18 núcleos em todo o País, para formar técnicos e pais e dar corpo a essa outra visão do mundo uma prática que também já começou em casa. Desde há dois meses que a filha, com a ajuda de uma psicóloga, apanha dois autocarros e vai trabalhar, dia sim, dia não, numa empresa da área alimentar. De manhã, prepara kits de café. À tarde, distribui o correio. “O que ela evoluiu desde que veio para casa… Já constrói frases, veste-se e toma banho sozinha…” Ao vê-la entrar no autocarro, de manhã, fica bem à vista o que a fundadora da Pais em Rede quer dizer. Ou depois, quando a seguimos no local de trabalho. Teresa Silva, a psicóloga educacional que a acompanha, certifica os seus passos, repetindo-os em voz alta, e elogiando-a, sempre que Luisinha acerta. Será um processo facilitado pelo facto de a empresa ser do irmão, mas a verdade é que já lá estava empregado um outro deficiente mental. Pedro Loureiro, 44 anos, ajuda na desmontagem e lavagem dos kits, há nove anos. Rui Brás, o responsável do armazém, sente-lhe bem a motivação: “Nunca tinha trabalhado com ninguém assim.”
Do desenvolvimento e autismo
É toda uma perspetiva ainda muito distante das vidas de Ana e Pedro, mãe e filho agora separados a semana toda, uma vez que o rapaz está internado, e com mais uma angústia, dada a dívida que Ana já tem na APPDA.
Paulo Ferreira, 43 anos, o diretor do centro, compreende bem o drama de famílias assim.
“Perto de 60% dos familiares de autistas deixam de trabalhar, porque precisam de uma atenção constante”, assinala.
Ana revê-se bem nestas palavras porque a Ana-mãe sempre se sobrepôs às outras, mal soube que o filho tinha uma anomalia, aos oito meses de gravidez. No caso, uma agenesia do corpo caloso, uma má formação congénita que se caracteriza pela ausência dessa estrutura, que faz a ligação entre os dois hemisférios cerebrais. “Geralmente, são uma espécie de vegetais. No caso do Pedro, revelou-se só num atraso psicomotor e em ataques de epilepsia, que, entretanto, ultrapassou.” Separada do pai do filho desde que este tinha onze meses, viveu à sua volta até ele fazer 10 anos. “Foi quando deixei de o tratar como um doente…” Ana conta tudo isto num tom entre o drama e a comédia.
“Costumam dizer que as mães de autistas vivem um stresse semelhante ao dos soldados na guerra. Só que estes, em algum momento acabam por voltar para casa”, e o seu olhar, por mais risonho que queira parecer, não consegue esconder a mágoa.
Ana Martins diz que, no início do ano, a Segurança Social reconheceu ter perdido o processo de Pedro, que está sem apoios desde os 18 anos. Apesar de os subsídios que o deficiente adulto pode receber ficarem abaixo dos 300 euros mensais só a mensalidade da APPDA supera essa valor, seriam uma ajuda preciosa. “Até se resolver, continuamos sem direito a nada…”
Fonte: site Visão Solidária por Teresa Campos.
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