Em artigo publicado nesta segunda-feira no jornal O Globo, Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e conselheira da Abrasco, aborda os descompassos entre os tempos da política eleitoral e o da saúde. Preocupados mais com o tempo que terão no horário eleitoral gratuito, as coligações partidárias não discutem políticas efetivas para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), quando não, a defesa da sua desregulamentação e enxugamento.
Ao afirmar que a Saúde Pública é uma das principais atribuições do Estado, Ligia pergunta: “Quem vai se habilitar a desempenhar o papel de coletar e aplicar recursos para a saúde? Os bancos, as indústrias, o comércio, o agronegócio, as empreiteiras? É o setor privado que vai se encarregar de reduzir a mortalidade infantil, manter e ampliar o acesso a remédios, segurar a onda da acelerada mudança demográfica?” Leia abaixo o artigo na íntegra ou clique aqui para conferir o texto no site do jornal.
“O tempo é uma variável estratégica para o atendimento na saúde, especialmente para casos de emergências e urgências, ou seja, situações clínicas ou cirúrgicas, cuja resolução não pode ser adiada. No início do século passado, a maior concentração da população em áreas rurais, a distância e a velocidade de cavalos e carruagens eram os principais obstáculos para encontrar médicos e parteiras. A concentração nas cidades, com maior facilidade e rapidez dos transportes, mudou a lógica do encontro entre pacientes e médicos. A grande mudança na saúde consistiu na inversão do local onde o cuidado ocorre. Quem precisa de assistência passou a sair de casa para procurar profissionais de saúde que trabalham em instituições especializadas. O aumento do número de profissionais, estabelecimentos e do acesso às ações preventivas e curativas tornaram a duração da espera e o período de contato com profissionais de saúde sinônimos de qualidade dos serviços de saúde.
Como todos conhecem a importância da rapidez e do acerto de intervenções para a manutenção da vida e prevenção de sequelas, a definição do período de retenção nas filas se tornou um tema recorrente nas disputas eleitorais de diversos países. Entretanto, para os candidatos brasileiros, nesse momento, o tempo primordial é o da duração dos programas de TV. O que importa é quantos minutos serão cedidos pelos partidos para as coligações, e não o compromisso, a pressa, dessas alianças político-partidárias com mudanças nos tempos essenciais para a saúde. Os tempos somados dos partidos não resultaram de acordos para reduzir os contratempos para a população. Consensos apoiados sobretudo na divisão de cargos, e não na abertura de novos espaços para participação política e negociação de mudanças, bloqueiam o surgimento de alternativas para a saúde.
Divergências sobre o SUS intra e entre coligações existem. Mas os acordos são fixados pelo silêncio, e não pelo debate de ideias. A pressão genérica dos defensores do Estado mínimo para cortar gastos, desregulamentar e enxugar indiscriminadamente o número de empregos nos órgãos governamentais significa, sem tirar nem pôr, enfraquecer ainda mais o SUS. Existem até previsões sobre a instauração de uma nova transformação na saúde, que eliminaria as instituições, inclusive os médicos, e deixaria às pessoas as tarefas de escolher e comprar livremente diagnósticos e tratamentos diretamente dos fabricantes. Seria como se os pacientes não só pudessem medir seus níveis de glicose, como já ocorre, mas também encontrassem no varejo as recomendações e alternativas terapêuticas com preços diferenciados.
Esses discursos estilo oráculo são sempre instigantes, especialmente os baseados em inovações tecnológicas. No entanto, as profecias perdem vitalidade se forem confundidas com verdades cientificas. Os custos da saúde são crescentes em função do envelhecimento, das inovações tecnológicas, e o autocuidado e as organizações de saúde encontraram formas estáveis de convivência. No curto prazo não existem sinais de retração de gastos e da oferta institucionalizada de ações de saúde. Portanto, estimular a privatização tem repercussões no gasto público. A conta da saúde passa a ser paga pelas famílias e pelas empresas, e não pelo governo, por meio da arrecadação de impostos gerais. Os gastos públicos diminuem. Contudo, os pacientes, mesmo de classe média, não conseguirão pagar faturas elevadas como tratamentos intensivos e drogas para determinadas doenças crônicas. Quem vai se habilitar a desempenhar o papel de coletar e aplicar recursos para a saúde? Os bancos, as indústrias, o comércio, o agronegócio, as empreiteiras? É o setor privado que vai se encarregar de reduzir a mortalidade infantil, manter e ampliar o acesso a remédios, segurar a onda da acelerada mudança demográfica?
Os atuais sistemas de saúde são constituídos por especialistas que trabalham em instituições providas de recursos materiais (desde cadeiras a medicamentos, sangue e equipamentos). As tentativas de fuga da realidade — ao estilo só falar de médicos ou a entrega de dinheiro e estabelecimentos para organizações privadas com baixíssima imunidade à corrupção e propensão a selecionar riscos — abdicam do confronto entre projetos e interesses, e também da construção de soluções democráticas. O comportamento bipolar diante do SUS, manifesto pela alternância entre sua glorificação e desprezo, impede a compreensão do papel da saúde pública para a melhoria das condições de vida. A mão invisível do mercado não tem poder de cura. Quem insiste em afirmar que as despesas com saúde pública são dinheiro jogado pelo ralo — desconsiderando os impactos sociais e econômicos da disseminação de epidemias e negação de solidariedade a doentes — está de olho nos recursos públicos ou é ruim da bola.
O período que resta até as eleições é suficiente para substituir as omissões em relação à política de saúde por responsabilidades, expressas em tempo da agenda dos candidatos com saúde pública e propostas sobre a compatibilidade entre as horas efetivamente trabalhadas e valores de remuneração para quem atua e se dedica ao SUS. O sistema de saúde brasileiro não é único e tampouco possui recursos exclusivos para o público ou para o privado. O que parece privado tem muito de público e vice-versa. Essas ambiguidades e incongruências, desde que encaradas como arranjos políticos, podem ser redirecionadas. Se tudo aquilo que for financiado com recurso público tiver uma placa “Entre, aqui é SUS” e os profissionais de saúde, não afrontados por salários e condições de trabalho inadequados, vestirem a camisa do sistema, certamente o sistema público ficará maior e melhor. Não será uma vitória final; entretanto, as alucinações sobre a privatização da saúde, fantasmas de eficiência e bom desempenho com dinheiro extraído diretamente de doentes de renda baixa e média deixarão de assombrar as políticas de saúde.”
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