Pessoa com deficiência e a maturidade
Publicado em: 12 de março de 2014 às 19:55.
Lia Crespo*.
Neste ano, completo 60 anos, portanto, estou prestes a incorporar os direitos dos idosos aos dos deficientes.
Nessas imagens, minha mãe, falecida em 2009, aparece eternizada nos seus 59 anos. Exatamente a idade que tenho agora. Ainda que na agilidade física e mental, minha mãe com 59 anos estivesse infinitamente melhor do que eu hoje, nesse vídeo, ela aparenta ser mais velha. Ou sou eu que pareço mais jovem nos meus 59 anos? Bem, há quem diga que os 50 anos de hoje são os 30 de ontem…
Esse vídeo me faz pensar… Quem era aquela Lia, uma garota de 24 anos, tão bonitinha e tão séria, que diz para a câmera uma fala típica dos deficientes daquela época, dos super-heróis pré-militância no movimento por direitos?
A jovem Lia, na flor da idade, tem grandes planos para si mesma e, de certa forma, foi muito bem sucedida. Mas, em 1978, ela não tem como saber como será a vida da Lia que, neste momento, está deitada na cama e digita num computador apoiado no peito. Três horas sentada numa cadeira de rodas se transformam numa experiência de terror. Ah, os exercícios para fortalecer as costas que a jovem Lia desdenhou…
A Lia de 1978 não sabe disso, mas ela faz parte de uma geração de pessoas com deficiência que estão vivendo mais do que a geração anterior, que estão sobrevivendo a seus pais. E isso tem trazido desafios antes não imaginados.
Na maioria das vezes, como no passado e ainda hoje, as mães são as primeiras aliadas dos filhos com deficiência. São as mães que tomam a frente e empreendem uma verdadeira via sacra em busca de reabilitação, educação, diversão e independência de seus filhos.
Como outras mães na mesma condição, incontáveis vezes minha mãe ficou internada comigo e meu irmão por conta das inúmeras cirurgias. Quantas vezes ela nos carregou no colo e viajou em pé em ônibus lotados, para que não perdêssemos um só dia de fisioterapia? O que seria de nós pessoas com deficiência sem nossas dedicadas e incansáveis mães?
Por isso e tudo o mais que ela fez por nós, é claro que, quando minha mãe descobriu, aos 88 anos, que estava com câncer de pâncreas, fiz questão de acompanhá-la em consultas médicas, para a realização de exames e durante as internações.
Evidentemente, o fato inusitado de a acompanhante da doente idosa ser uma cadeirante foi um fator complicador. Por conta dessa tendência a infantilizar e menosprezar os idosos e os deficientes, muitas vezes, minha mãe e eu percebíamos (não sem algum divertimento) a confusão na cabeça das recepcionistas e dos médicos em geral: “A quem devo me dirigir?”
Minha mãe ficou internada, muitas vezes por longos períodos, num dos melhores hospitais de São Paulo. Sem queixas a respeito do tratamento dispensado a ela por médicos e enfermeiros.
No entanto, a falta de acessibilidade trouxe-me, como sua acompanhante, dissabores e humilhações. Para usar o banheiro com independência, preciso de uma barra de apoio do lado direito e um vaso sanitário uns dez centímetros mais elevado do que o normal. Em todo o hospital, só havia dois banheiros com essas características. Nenhum nos quartos, nem mesmo nos andares em que minha mãe ficou diversas vezes internada. Sendo assim, eu precisava tomar elevadores a cada vez que necessitasse usar o banheiro. E, ainda por cima, tinha que disputar o uso desses dois únicos sanitários acessíveis com os funcionários do próprio hospital.
Por diversas vezes, fui à administração do hospital pedir alguma providência para tornar menos dolorosa aquela, já por natureza, difícil situação. Solicitei que o hospital comprasse um assento elevatório para o vaso sanitário. O equipamento poderia ser oferecido quando necessário e retirado quando não fosse útil.
Como justificativa arrolei uma série de leis e direitos, garanti a eles que o equipamento não seria usado apenas por mim, mas que, certamente, poderia beneficiar idosos internados e ainda assegurei que (já que a expectativa de vida da população tem aumentado e que as pessoas com deficiência também estão vivendo mais) o hospital deveria estar preparado para acolher adequadamente um número crescente de pessoas com deficiência como pacientes e como cuidadora de seus pais ou outros parentes idosos.
O assento elevatório seria um elemento a mais de acessibilidade que o hospital ofereceria para o conforto e a segurança de seus pacientes e acompanhantes.
Acho que não preciso dizer que nenhum dos meus pedidos desesperados, incluindo o que fiz, dois dias antes da morte de minha mãe, foi atendido. Nem mesmo o pedido para que os funcionários não usassem os dois únicos sanitários acessíveis. Pelo contrário, cheguei a ser destratada por um funcionário, que me mandou tomar o elevador para usar o outro banheiro acessível. (Depois da morte de minha mãe, escrevi uma carta ao Ministério Público relatando minhas agruras. Meses depois, recebi uma resposta dizendo que estavam fazendo uma vistoria de acessibilidade no hospital. Não sei no que deu. Nunca mais voltei lá.)
Minha própria experiência me fez refletir sobre o fato, constatado há algum tempo, de que muitos de meus amigos jurássicos do movimento em defesa dos direitos das pessoas deficientes também estavam vivenciando a condição de cuidadores e/ou acompanhantes de seus pais idosos.
Essa vivência também me fez perceber que, além do despreparo da sociedade, as pessoas com deficiência, quando precisam cuidar de seus pais idosos, muitas vezes, também se deparam com um fator complicador, pois, simultaneamente, elas estão tendo de enfrentar também o desafio de lidar com as dificuldades típicas da sua própria maturidade, ou seja, no momento mesmo em que ficam potencializadas as limitações impostas pela deficiência em si.
Nós, os jurássicos, durante grande parte de nossas vidas fomos educados e treinados para vencer individualmente os desafios e sermos independentes. Com a militância no movimento por direitos, aprendemos e ensinamos que não era mais nossa obrigação empunhar nossas bengalas canadenses para enfrentar e vencer heroicamente os obstáculos. Ao contrário, é nosso direito que as barreiras sejam removidas.
Muito se alcançou desde que os jurássicos começaram a luta por direitos no final dos anos 1970. Como resultado dessa atuação, temos uma legislação que, gradativamente, vem mudando o ambiente nas cidades e constatamos uma revolução cultural que, de modo irreversível, vem aos poucos transformando a realidade e a vida das pessoas com deficiência.
Apesar ou por causa disso, frequentemente, ouço dos jovens com deficiência um discurso recorrente pela superação, que me remete ao período anterior ao movimento. Discurso esse que desconhece o fato de que somos todos interdependentes e de que — seja qual for o nível de acessibilidade oferecido — nem todos serão autônomos e independentes, sobretudo, na velhice.
Com os jurássicos cansados de guerra se aposentando e os jovens com deficiência enaltecendo a superação, não vejo o movimento das pessoas com deficiência suficientemente preocupado com as necessidades advindas do desgaste físico, mental e emocional resultante da deficiência em si, assim como da maturidade.
Para ajudar àqueles que sempre as apoiaram e para continuar a viver com dignidade e independência, quando ficam sós, as pessoas com deficiência mais velhas demandam atendentes pessoais, tecnologias assistivas e serviços adequados a suas necessidades.
Com o envelhecimento da população brasileira, cada vez mais esses recursos serão indispensáveis. Nossa sociedade estará preparada para isso? Não, sem que haja investimentos financeiros, logísticos e, sobretudo, humanos. Não, sem que as próprias pessoas com deficiência enfrentem mais esse desafio.
* Lia Crespo é jornalista, com mestrado em Ciências da Comunicação (ECA-USP), doutorado em História (FFLCH-USP), militante do movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência, desde 1980, e autora do livro infantil “Júlia e seus amigos” (Nova Alexandria, 2006), que trata de deficiência, de educação inclusiva e da importância da amizade para a construção de uma sociedade inclusiva.
Fonte: Folha.
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