Em um pequeno e simples salão da residência de Santa Marta, no Vaticano, o Papa Francisco recebeu La Voz del Pueblo sem a presença de terceiros e com apenas uma condição: “A única coisa que lhe peço é que jogue limpo”, disse antes de o gravador entrar em ação. Depois, durante 45 minutos, tempo que durou o encontro, confessaria que em outros tempos tinha “pânico dos jornalistas”. Fica claro que é um trauma superado.
Fonte: http://bit.ly/1IV0Syj |
Jorge Bergoglio animou-se a passear por sua intimidade, responder com vontade e gestos quando a pergunta o entusiasmava e também a fazê-lo de modo seco e taxativo diante de uma consulta que, dependendo da sua resposta, poderia produzir estardalhaço fora dos muros da Santa Sé. A solidão, a pizza, o medo da dor física, seu magnetismo, as coisas que o fazem chorar, a pressão, a televisão, o valor das utopias... Esses foram alguns dos temas sobre os quais conversou, conversa que teve como ponto de partida a sua eleição.
A entrevista é de Juan Berretta e publicada por La Voz del Pueblo, 24-05-2015. A tradução é de AndréLanger.
Eis a entrevista.
Sonhava em ser Papa.
Nunca!!!! Assim como nunca sonhei em ser presidente da República ou general do Exército. Você viu que há alguns rapazes que sonham com isso. Eu não.
Mas avançando no serviço episcopal nunca fantasiou com essa possibilidade?
Após 15 anos em postos de comando nos quais foram me colocando, voltei à vida simples, a ser confessor, padre... A vida de um religioso, de um jesuíta, vai mudando de acordo com as necessidades. E com respeito à possibilidade, eu estava na lista dos papáveis no outro conclave... Mas desta vez, a segunda [conclave de 2013], pela idade, 76 anos, e porque, além disso, havia gente mais valiosa, certamente... Assim que ninguém me indicava, ninguém. Além disso, diziam que eu era um “kingmaker” (ou fazedor de reis, como são chamados aqueles cardeais que devido à sua experiência e autoridade são mais capazes que outros para pesar no resultado eleitoral), que poderia influir nos cardeais latino-americanos nas votações. Tanto eu era o assunto que nem sequer uma foto minha saiu nos jornais, ninguém pensava em mim. Nas casas de apostas de Londres eu estava em 46º lugar (ri com vontade). Eu também não pensava em mim, nem me ocorria.
Mesmo que em 2005 tenha sido o segundo mais votado, depois de Ratzinger?
Essas são coisas que se dizem por aí. A verdade é que na outra eleição ao menos aparecia nos jornais, constava entre os papáveis. Internamente, estava claro que tinha que ser o Bento e houve quase unanimidade em torno do nome dele, e gostei muito disso. A sua candidatura era clara, e na segunda [no conclave de 2013] não havia nenhum candidato que claro. Havia vários possíveis nomes, mas nenhum nome forte. Por isso, vim para Roma com esse entendimento e com passagem para retornar no sábado à noite e poder estar em Buenos Aires no Domingo de Ramos. Deixei inclusive a homilia pronta sobre a mesa do escritório. Nunca pensei em que isso fosse acontecer comigo.
E quando foi eleito, o que sentiu?
Antes da eleição definitiva senti muita paz. “Se Deus quer isso...”, pensei. E fiquei em paz. Durante os escrutínios, que duram uma eternidade, eu rezava o terço, tranquilo. Tinha ao meu lado o meu amigo o cardeal Claudio Hummes, que, em uma votação anterior à definitiva, me disse: “não te preocupes eh, que assim trabalha o Espírito Santo...” (ri novamente).
E assumiu em seguida?
Levaram-me à sacristia, trocaram a batina, e vamos lá... E aí disse o que me veio.
Foi algo natural, então.
Sim, senti muita paz e disse o que me veio ao coração.
Reconhece o magnetismo que provoca nas pessoas? Digo-o pelo plus que dá sua figura à investidura papal.
Sim... Sei que as pessoas... (duvida, faz silêncio). Primeiro não entendia por que isso acontecia. E me contam alguns cardeais que as pessoas dizem: “o entendemos”. Claro, eu procuro ser claro nas audiências, nas coisas que digo, como hoje (referência à audiência pública da quarta-feira, dia 20 de maio) quando contei uma anedota dos tempos de quando cursava a quarta série. Então, é como as pessoas entendem o que quero dizer. Como quando falei do caso dos pais separados, que transformam os filhos em reféns, algo muito triste, transformam os filhos em vítimas; o pai fala mal da mãe, ou o contrário, e a pobre criança fica com uma grande confusão na cabeça. Procuro ser concreto e é isso que vocês chamam de magnetismo; certos cardeais me dizem que tem a ver com o fato de que as pessoas me entendem.
Desfruta da audiência pública?
Sim, desfruto em um sentido humano e espiritual, as duas coisas. As pessoas me fazem bem. É como se a minha vida fosse se implicando com a vida das pessoas. Eu, psicologicamente, não consigo viver sem pessoas, não sirvo para ser monge, por isso decidi morar aqui nesta casa [na residência Santa Marta]. Esta é uma casa de hóspedes: ela tem 210 quartos, aqui moram 40 pessoas que trabalham na Santa Sé e as demais são hóspedes, bispos, padres, leigos, que passam e se hospedam aqui. E isso me faz muito bem. Vir aqui, comer no refeitório, onde me encontro com todos, ter a missa na qual quatro dias por semana vêm pessoas de fora, das paróquias... Gosto muito disso. Eu me fiz padre para estar com as pessoas. Dou graças a Deus por não ter perdido isso.
Do que da sua vida anterior ao papado tem saudades?
De sair à rua. Tenho saudades disso, da tranquilidade de caminhar pelas ruas. Ou ir a uma pizzaria e comer uma boa pizza (ri).
Pode pedir um delivery ao Vaticano.
Sim, mas não é a mesma coisa; a questão é ir lá. Eu sempre fui muito de bater pernas. Como cardeal gostava de caminhar pela rua, andar de ônibus, trem. A cidade me encanta, sou cidadão de alma. Não poderia viver em uma cidade como a sua, por exemplo, gostaria muito... Não, Tres Arroyos não é tão pequena, sim poderia viver aí. Mas no campo não conseguiria viver.
Aqui anda pela cidade?
Nãããooo (outra vez ri com vontade). Vou às paróquias... Mas não posso sair. Imagina se eu saio e acontece algo. Um dia saí de carro apenas com meu motorista e me esqueci de fechar a janela, estava aberta e não me dei conta. E criou-se uma confusão... Eu estava no assento do caroneiro, tínhamos que ir a um determinado lugar, mas as pessoas não deixavam o carro avançar. Claro, que o Papa esteja na rua...
Isso tem a ver com a sua forma de ser.
É verdade, aqui me chamam de indisciplinado. Não sigo muito o protocolo. O protocolo é muito frio, embora haja coisas oficiais às quais me atenho totalmente.
De noite, consegue descansar, se desligar?
Eu tenho um sono tão profundo que me jogo na cama e durmo a noite inteira. Durmo seis horas. Normalmente, às 21h estou na cama e lei até quase às 22h, quando um olho começa a lacrimejar e então desligo a luz e aí durmo até às quatro da manhã, quando desperto sozinho. É o relógio biológico. Isso sim, depois necessito de uma sesta. Tenho que dormir cerca de 40 minutos a uma hora; aí tiro os sapatos e me deito na cama. E também durmo profundamente, e também acordo sozinho. Nos dias em que não faço sesta, o sinto.
O que lê antes de dormir?
Agora estou lendo sobre São Silvano do Monte Athos, um grande mestre espiritual.
Na visita que fez a Manila, no verão, falou sobre a importância de chorar. Você chora?
Quando vejo dramas humanos. Como no outro dia ao ver o que está acontecendo com o povo rohingya, que andam em cima dessas embarcações em águas tailandesas e quando se aproximam da terra lhes dão um pouco de comida, água e os devolvem outra vez ao mar. Isso me comove profundamente, esse tipo de drama. Depois, as crianças doentes. Quando vejo o que aqui chamam de “doenças raras”, que são produzidas por descuido do ambiente, tudo se revolve dentro de mim. Quando vejo essas criaturas digo ao Senhor: “Por que elas e não eu”. Quando vou à prisão também me comovo. Das três Quintas-Feiras Santas que tive, em duas fui a prisões: uma vez a uma de menores e a outra vez na de Rebbibia.
E depois, em outras cidades da Itália que visitei, fui à prisão, almocei com eles, e quando estava conversando me vinha à cabeça: “Pensar que eu poderia estar aqui”. Ou seja, nenhum de nós está seguro de que nunca vai cometer um crime, uma coisa digna de ser encarcerado. Então digo para mim mesmo por que Deus permitiu que eu não estivesse aqui. E sinto dor por eles e agradeço a Deus por não estar, mas ao mesmo tempo sinto que esse agradecimento também é de conveniência, porque eles não tiveram a oportunidade que eu tive de não dar uma mancada digna de estar preso. Isso me leva ao pranto interior. Sinto isso com frequência.
Mas chega a chorar com lágrimas?
Publicamente não choro. Aconteceu que duas vezes estive no limite, mas não pude frear a tempo. Estava muito comovido, inclusive houve algumas lágrimas que me escaparam, mas fiz de conta nada tinha acontecido e depois de algum tempo passei a mão no rosto.
Por que não queria que o vissem chorar?
Não sei, me pareceu que tinha que seguir em frente.
Quais foram essas situações?
Lembro de uma, a outra não. A que lembro teve a ver com a perseguição dos cristãos no Iraque. Estava falando sobre isso e me comovi profundamente. Pensar nas crianças...
Do que tem medo?
Em geral, não tenho medo. Sou antes temerário, me empenho sem medir as consequências. Isso, às vezes, me dá dores de cabeça, porque se digo uma palavra meio torta... (outra vez ri com intensidade). Quanto aos atentados, eu estou nas mãos de Deus e na minha oração falei ao Senhor e lhe disse: “Olha, caso isso tiver que acontecer, que seja; somente te peço uma graça, que não me doa” (ri), porque sou covarde à dor física. Suporto a dor moral, mas a física, não. Sou muito covarde nisso, não é que tenha medo de uma injeção, mas prefiro não ter problemas com a dor física. Sou muito intolerante. Penso que isso tem a ver com a cirurgia do pulmão que tive que fazer quando tinha 19 anos.
Sente pressão?
As pressões existem. Toda pessoa de governo sente pressões. Neste momento, o que mais me custa é a intensidade que o trabalho exige. Estou tendo um ritmo de trabalho muito forte, é a síndrome do final do ano escolar, que aqui termina no final de junho. E então se juntam mil coisas, e provavelmente há... Depois há os problemas que me arrumam, com o que disse ou não disse.... Os meios de comunicação também tomam uma palavra e a descontextualizam. Outro dia, na Paróquia de Ostia, perto de Roma, fui saudando as pessoas; puseram os idosos e os doentes no ginásio. Estavam sentados e eu passava e os saudava. Então disse: “Olhem que divertido, aqui onde brincam as crianças estão os idosos e os doentes. Eu compreendo vocês, porque também sou idoso e também tenho meus achaques, sou um pouco enfermo”. No outro dia saiu nos jornais: “O Papa confessou que estava doente”. Contra esse inimigo não se pode.
Acompanha tudo o que se publica?
Não, não. Leio apenas um jornal, o La Repubblica, que é um jornal para setores médios. Faço-o de manhã e não passo mais de 10 minutos folheando. Não vejo televisão desde 1990 (toma o tempo para responder). É uma promessa que fiz a Nossa Senhora do Carmo na noite de 15 de julho de 1990.
Por um motivo em particular?
Não, não. Falei para mim mesmo: “Não é para mim”.
Não vê os jogos do San Lorenzo?
Não vejo nada.
Como se informa sobre os resultados?
Há um guarda suíço que todas as semanas me deixa os resultados e a classificação.
Você, entre os Papas, seria um Messi ou um Mascherano?
Não saberia lhe dizer, porque não sei distinguir o estilo dos dois, porque não vejo futebol. O Messi veio duas vezes aqui e nada mais, não o tenho visto mais.
Navega na internet?
Nada. E dar entrevistas jamais, agora eu passei a dar, é o estado de graça. Antes, enfrentar um jornalista me dava pânico.
Como vê a Argentina a partir do Vaticano?
Como um país de muitas possibilidades e de tantas oportunidades perdidas, como dizia o cardeal Quarracino. E é verdade. Somos um país que perdeu tantas oportunidades ao longo da história. Algo está acontecendo com toda a riqueza que temos. Como o conto dos embaixadores dos países que foram se queixar com Deus porque Ele havia dado aos argentinos tantas riquezas e a eles somente uma: ou a agricultura ou a mineração. Deus os ouviu e respondeu: “Não, perdão, para balançar lhes dei os argentinos”.
Acompanha a evolução da política na Argentina?
Não, absolutamente. Cortei aqui a recepção de políticos porque me dei conta de que alguns usavam isso e minha foto, embora também seja verdade que algum outro nem disse que esteve comigo e nem tirou foto. Mas, para evitar isso, os políticos em audiência privada, não. Caso vierem, vão às audiências gerais e os saúdo. Mas não sei como andam as eleições nem quem são os candidatos. Imagino quem devem ser os principais, mas também não sei como vão as tensões. Sei que nas PASO [Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias] de Buenos Aires ganhou o PRO, porque vi essa informação no jornal. Saiu até no La Repubblica.
Gosta que o classifiquem como o Papa pobre?
Caso colocarem depois outra palavra, sim. “Pobre cara”, por exemplo... (volta a rir com vontade). A pobreza é o centro do Evangelho. Jesus veio para pregar aos pobres. Se tirarem a pobreza do Evangelho não vão entender nada, tiram a medula.
Não é utópico pensar que se pode erradicar a pobreza?
Sim, mas as utopias nos impulsionam para frente. Seria triste se um jovem ou uma jovem não tivesse utopias. Há três coisas que todos devem ter na vida: memória, capacidade de ver o presente e utopia para o futuro. Não devemos perder a memória. Quando os povos perdem sua memória acontece o grande drama de descuidar dos idosos. Capacidade de hermenêutica em relação ao presente, interpretá-lo e saber por onde é preciso ir com essa memória, com essas raízes que trago, como a exerço no presente, e aí está a vida dos jovens e dos adultos. E o futuro, aí está a vida dos jovens, sobretudo, e das crianças.
Com memória, com capacidade de gestão no presente, de discernimento e a utopia para o futuro, aí se envolvem os jovens. Por isso, o futuro de um povo se manifesta no cuidado dos idosos, que são a memória, e das crianças e dos jovens, que são aqueles que vão levá-la adiante. Os adultos têm que receber essa memória, trabalhá-la no futuro e dá-la aos filhos. Uma vez li algo muito bonito: “O presente, o mundo que recebemos, não é apenas uma herança dos mais velhos, mas antes um empréstimo que os nossos filhos nos fazem para que o devolvamos melhor”.
Se eu corto as minhas raízes e me perco a memória vai acontecer comigo o que acontece com a planta, vou morrer; se eu vivo somente um presente sem olhar para o futuro, vai acontecer comigo o que acontece com todo mau administrador que não sabe projetar. A contaminação ambiental é um fenômeno desse estilo. As três têm que caminhar juntas; quando falta uma, um povo começa a decair.
Quais são os piores males que afetam o mundo hoje?
Pobreza, corrupção, tráfico de pessoas... Posso me equivocar na estatística, mas o que você vai me dizer se lhe pergunto: qual item vem em gasto no mundo depois da alimentação, do vestuário e dos remédios? O quarto são os cosméticos e o quinto são os animais de estimação. É grave isso, eh. O cuidado dos animais de estimação é, de certa forma, como o amor programado, ou seja, eu posso programar a resposta amorosa de um cachorro ou de um gatinho, e já não tenho necessidade da experiência de um amor de reciprocidade humana. Estou exagerando, não tomem isso textualmente, mas é para se preocupar.
Por que sempre repete “rezem por mim”?
Porque necessito. Eu necessito que seja sustentado pela oração do povo. É uma necessidade interior, tenho que estar sustentado pela oração do povo.
Como gostaria de ser recordado?
Como um cara bom. Que digam: “Este era um cara bom que procurou fazer o bem”. Não tenho outra pretensão.
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