Pedaço de pano
Escrito por Leticia Sande (*)
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De tantas memórias, as minhas favoritas são das tardes deitadas lado a lado naquela cama dura. Ela se recordando do passado e eu o descobrindo. Numa dessas tardes, ela se levantou e depois de muito procurar, trouxe uma caixinha onde lá no fundo tinha um pedaço de pano. Eu olhei sem muito entender, mas ela logo foi falando: “Eu o usei no primeiro dia em que conheci seu avô. Eu o usei e era um vestido lindo! Só sobrou esse pedaço de pano”.
Porque às seis da manhã ela levantava. Era quando o galo cantava.
Às seis da manhã, todos os dias. Às seis da manhã, ela colocava seu vestido florido e sua colônia barata e, se em uma palavra pudesse ser resumida, com certeza seria: simplicidade.
Certa vez estávamos no avião, me lembro bem: Eu, muito pequena, queria chegar ao destino com a melhor aparência possível; então pensei porque não uma sombra azul e um batom roxo? Cheia de orgulho perguntei: “Ficou bom, vó?” E ela com sua voz delicada me olhou e falou: “Acho que podia deixar um pouco mais simples”, limpando com seu lencinho de bolso o meu rosto de palhaço.
De tantas memórias, as minhas favoritas são das tardes deitadas lado a lado naquela cama dura. Ela se recordando do passado e eu o descobrindo. Numa dessas tardes, ela se levantou e depois de muito procurar, trouxe uma caixinha onde lá no fundo tinha um pedaço de pano. Eu olhei sem muito entender, mas ela logo foi falando: “Eu o usei no primeiro dia em que conheci seu avô. Eu o usei e era um vestido lindo! Só sobrou esse pedaço de pano”.
Na minha cabeça de criança de seis, sete anos de idade, eu acreditei que SÓ tinha sobrado um pedaço de pano. Hoje sei que era muito mais. Era um pedaço de pano que durou a vida inteira, até que a morte os separasse. Foi o primeiro e o último pedaço de pano. E, naquele momento, já não era mais um pano. Era tudo aquilo que eles tinham construído: todas as brigas, todas as alegrias, todos os choros e todas as risadas que habitavam o mesmo pedaço de pano.
Enquanto as coisas vão ficando mais fáceis e mais rápidas, as pessoas esquecem o “pedaço de pano” - esquecem os momentos do dia e as coisas pequenas. As coisas simples, elas esquecem. E as coisas quebram sem ter um pano sobrando para remendar porque é sempre mais fácil comprar um novo do que costurar o antigo.
E se você me perguntar o que eu quero, eu quero mil pedaços de pano para poder costurar e descosturar quando for preciso. Porque comprar um novo pano não é simples. Comprar um novo destrói minhas tardes na cama dura. E elas são meu maior pedaço de pano.
(*)Leticia Sande (*)dedica este texto à sua Vó Margarida in memoriam
http://www.portaldoenvelhecimento.com/cronica/item/4148-peda%C3%A7o-de-pano
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