A falta d’água afeta a dignidade humana, tem implicações de saúde pública, desespera, paralisa a atividade econômica. Pois prepare-se: 2015 começou sob a sombra da crise hídrica. O cenário que se está montando é gravíssimo.
Já quase terminado janeiro, contata-se que choveu muito menos do que era esperado. No Sistema Cantareira, choveu 35% da média histórica. No Sistema Alto Tietê, meros 26% da média histórica. E o quadro não encontra alívio nos demais mananciais, também deficitários.
A entrevista é do Coletivo Conta D’Água, publicada por Inês Castilho no sítio Outras Palavras, 27-01-2015.
A própria Sabesp admite que o que existe de água em todos os sistemas, considerando o padrão de consumo atual, vai dar pra 50 dias, ou seja, março. E daí? Aí, acabou. Não é que vai faltar um pouco de água. É que não tem água; não tem para onde correr.
Para entender melhor as dimensões humanas, sociais, econômicas e ambientais dessa crise, o projeto Conta D’Água procurou uma das maiores especialistas do tema, a ambientalista Marussia Whately, dirigente do projetoÁgua São Paulo, do Instituto Socioambiental (ISA), e uma das principais protagonistas da Aliança pela Água, uma iniciativa reunindo 30 ONGs, visando propor soluções e cobrar providências do poder público.
Eis a entrevista.
A crise na vida real
Tornou-se séria a perspectiva de o Sistema Alto Tietê, que abastece a zona leste de São Paulo, entrar em colapso. Isso quer dizer que quatro milhões de pessoas deixarão de ter água pra beber. Hoje, o nível do reservatório está em 10,4%, o que é extremamente crítico porque se trata de um reservatório com apenas metade da capacidade dosistema Cantareira. E está baixando.
Como você vai fazer pra manejar essa região? Onde as pessoas vão pegar água? Uma das possibilidades é levar água potável com caminhões-pipa provenientes de Ubatuba, São José. Quantos litros serão necessários para abastecer a zona leste todos os dias? Qual a qualidade da água que chegará aos consumidores?
Nessa região, você tem reservatórios de distribuição, as caixas d’água da Sabesp, como a que existe na avenida Consolação, ou no Paraíso. Esses reservatórios, logicamente, estarão vazios. Mas eles têm de ser o lugar para onde os caminhões-pipas serão levados.
Não se pode deixar caminhão-pipa no mercado. A partir de agora, será preciso que se mapeiem todos os poços que estão autorizados a captar água mineral. Num plano de contingência, todos esses 50 mil poços têm de ter sua outorga suspensa e a exploração será de uso exclusivo do Estado.
Agora, a Sabesp vai fazer isso? Não. Esta é uma responsabilidade do governo do Estado, com as prefeituras. É uma agenda que temos que trabalhar para que se torne realidade.
Vamos um pouco mais em frente com esse cenário. Os caminhões-pipas foram captar a água. E como essa frota chegará à zona leste? Será necessário organizar uma grande operação de logística durante as madrugadas, com menos trânsito, para transportar toda essa água. Porque serão centenas de caminhões-pipas.
Os caminhões encherão o reservatório e amanhã, das 10h às 12h, a população de Ferraz de Vasconcelos, com seu comprovante de residência em mãos, vai poder retirar uma quantidade de água por pessoa. Das 12h a tal hora, vai ser a população da zona leste…
Isso é um plano de contingência numa situação de estresse grave. Água pra escovar os dentes, tomar banho e cozinhar. Para outros fins —como dar descarga, lavar roupa, limpar a casa—, a saída será a água da chuva. Para isso, postos de saúde, escolas, creches, unidades de serviço público, precisarão se equipar com caixas para captar água da chuva, com filtro, tudo direitinho.
É preciso que a cidade se prepare. É preciso que o poder público se organize. A possibilidade de implantação de um racionamento de cinco dias sem água é bem concreta. Mas uma coisa é viver cinco dias sem água em uma situação organizada. Outra coisa, bem diferente, é ter o racionamento em uma área como a zona leste da Capital, com uma rede toda remendada, com áreas inteiras de ocupação irregular. O resultado torna-se muito mais imprevisível.
Para dar um exemplo. Ontem, a partir das 16h30, não tinha mais água da rua em minha casa. Mas se trata de uma casa com apenas dois moradores. Manejando o consumo, conseguimos ficar até cinco dias sem água da rua. Vamos ter restrição? Claro, mas dá para garantir as necessidades básicas. Essa situação é totalmente diferente da que é vivida em uma comunidade com poucas caixas d’água, com casas habitadas por um número muito maior de moradores.
Mas fica pior quando se considera que essas pessoas funcionam em horários difíceis –gente chegando muito tarde em casa, por causa do transporte deficiente (quando a água já foi fechada), e que sai muito cedo de casa, também por causa do transporte deficiente (e a água ainda não voltou).
Uma creche que não abre porque não tem água gera um efeito cascata. Se as crianças não podem ir para a creche, a mãe tem de faltar no emprego. Tomemos o caso de uma diarista. Quantos dias ela poderá faltar no emprego? Será que ela vai poder levar os filhos ao emprego? E isso impacta a vida da patroa dela também. Assim, começa um efeito de instabilidade grande na sociedade. Esse é um dos efeitos que ainda não estão devidamente dimensionados. Os governantes estão desatentos a essa questão.
E há a situação crítica das populações mais sensíveis, que precisam ser levadas em consideração. Sabe-se que a população da terceira idade, mais de 60 anos, e as crianças até 7 anos têm uma vulnerabilidade maior à desidratação. E há ainda os acamados, com deficiência de mobilidade e idosos, aos quais é preciso garantir o suprimento básico de água no próprio domicílio. Em suma, há uma série de desdobramentos éticos envolvida na gestão da crise.
Já se esperam protestos. Em Itu, vizinho de São Paulo, até donas de casa colocaram fogo nas ruas. Aqui em São Paulo, vai haver um escalonamento de manifestações e de violência porque a água mexe com a questão da dignidade. Quantos dias nós aguentamos sem poder dar descarga?
É preciso instalar um Comitê de Crise. Temos de falar e explicar que se trata de uma crise sem precedentes. O mais natural seria o governador do Estado de São Paulo [Geraldo Alckmin] puxar isso, mas se ele não puxar, a sociedade civil tem de fazê-lo.
O Comitê é fundamental no sentido de começar a desenhar as linhas de ação de um Plano de Contingência. A população precisará de referências públicas em relação à água. Também é importante o acesso à informação.
Nós lançaremos em fevereiro um copilado de propostas de especialistas para a gestão dessa crise. Um dos itens importantes, por exemplo, é a questão da qualidade da água oferecida pelos caminhões-pipa. Teria de haver em cada subprefeitura uma lista de caminhões-pipas autorizados a operar. E informações claras do tipo: “Aqui, na área desta Subprefeitura, faltará água nos próximos cinco dias; água potável poderá ser encontrada nesses endereços, de tal hora a tal hora”. Isso tem que ser feito e não é responsabilidade da Sabesp.
Em última instância, quem vai ter de decretar os estados de emergência são as prefeituras, mas elas estão receosas de assumir o protagonismo da crise. Pela lei de saneamento, as prefeituras são os titulares do saneamento. Teoricamente, seriam as prefeituras que deveriam mandar nessa confusão. O contrato de prestação de serviços da Sabesp é assinado com a prefeitura, que delega a regulação para a Arsesp, Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo.
Eu acredito que tem um canal, que vai ser começado pelo município de SP, que está revendo o contrato com aSabesp, e está percebendo que os moradores do município vão ficar sem água, enquanto a empresa recebe uma grana incrível em cima e não reinveste.
Um acionista da Sabesp que eu acho que está sendo pouco questionado é o próprio governo do Estado, que detém 51% da empresa. Quando são pagos os dividendos, 51% voltam para o governo do Estado, e não necessariamente o governo tem reinvestido na Sabesp. (Grande parte do investimento em infraestrutura que a Sabesp fez nos últimos anos foi com financiamento da Caixa, financiamento do Banco Mundial, várias fontes).
Plano de contingência
O plano de contingência é a principal reivindicação da Aliança pela Água. Em final de outubro do ano passado, fizemos um processo rápido de escuta de mais ou menos 280 especialistas de diferentes áreas. E o plano de contingência apareceu como uma das principais reivindicações desses especialistas.
Naquela ocasião, a ideia predominante era que se adotasse um plano de contingência que permitisse que chegássemos a abril deste ano com um nível de reservação de água nas represas, que desse para aguentar o período da estiagem. Infelizmente, esse plano não foi elaborado e muito menos realizado.
O que aconteceu na prática foi uma negação da crise hídrica por parte do governo do Estado até dezembro de 2014 —uma negação que vai levar para outras instâncias de responsabilização.
O governador terminou o ano dizendo que não teríamos racionamento e que não haveria falta d’água. E começou 2015 dizendo que existe o racionamento e que pode ser que falte água.
Se fosse um novo governador, a gente até poderia aceitar, mas se trata do mesmo cara. Então tem uma questão aí: a forma como a crise foi conduzida nos fez perder muito tempo em termos de ações para chegar a um nível seguro em abril.
Realmente, existe um componente de clima na crise que não dá para negar. Já está confirmado que 2014 foi o ano mais quente da história. O que já seria um quadro de extrema gravidade, entretanto, tem sido agravado porque desde 2011 a Sabesp está superexplorando as represas. Ou seja, tirando delas mais água do que entra.
O governo do Estado deveria ter assumido a liderança em relação à crise da água em São Paulo. No caso do sistema Cantareira, essa liderança deveria ser dividida com o governo federal, por intermédio da Agência Nacional de Águase do Ministério do Meio Ambiente, a quem compete organizar a Política Nacional de Recursos Hídricos. O problema é que muitos dos nossos instrumentos de gestão vêm sendo desmantelados em escala federal, estadual e municipal.
“O Ministério do Meio Ambiente está omisso em relação aos recursos hídricos. A Agência Nacional de Águastransformou-se num mero órgão que faz a outorga, já que ficou enfraquecido nesse processo de construção de Belo Monte.” A síntese é a seguinte: “Já basta a licença ambiental, não me venham inventar mais uma licença de recursos hídricos, pra empacar a hidrelétrica”.
É preciso recuperar as represas. O Sistema Cantareira está com o nível em torno dos 5%. Não dá mais! Não vai encher. Vai ter que ter racionamento.
A perspectiva com a qual a Aliança da Água trabalha é a de união entre diferentes setores (especialistas na pauta do meio ambiente e sociedade) para a elaboração de um Plano de Contingência mais sólido. Ficar refém, à espera de um plano elaborado pela Sabesp, além de não ser propositivo também não é eficaz. É fundamental que os movimentos sociais e as universidades debatam esse tema com profundidade e urgência.
Quem é o responsável?
O padrão de chuvas, repito, foi aquém da média histórica, mas houve o acúmulo de infelicidades. Uma que é certamente muito grave foi a ausência de visão estratégica mínima do responsável, que é o governo estadual paulista. Ele deveria ter liderado a gestão da água, mas perdeu um ano negando a existência da crise, afirmando para a população que não faltaria água, criando uma medida que foi o bônus, apresentado como uma alternativa ao racionamento. Só que o bônus é muito questionável porque descapitaliza a empresa. Diminui a capacidade de investimento da Sabesp. Do ponto de vista econômico, no momento de escassez de um produto, você baixar o preço dele, é um contrassenso.
Durante os nove meses de campanha, não se conseguiu mudar o padrão de consumo. Metade dos consumidores aderiu e reduziu 20% o gasto de água. Um em cada quatro reduziu, mas não atingiu a meta. E um em quatro aumentou o consumo. A verdade é que junto com o bônus teria de ter a sobretaxa para o excesso de consumo e uma série de ações. O bônus foi apenas uma ação paliativa, tentando substituir uma ação mais radical que seria o racionamento. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista mais técnico e operacional, só isso não gerou a redução do consumo de água que seria necessário.
Desde o início do ano passado, falava-se em reduzir pela metade a retirada de água do sistema Cantareira. Ou seja, sair de 31 metros cúbicos por segundo para 16. Mas isso só está sendo atingido agora. Eles foram baixando de 31 para 27, para 24…
No total do abastecimento de água de São Paulo, conseguiu-se reduzir o consumo de 69 metros cúbicos por segundo para 55. Ou seja, todas as medidas adotadas – bônus, redução da pressão, ampliação de captação, melhoria no índice de vazamentos — lograram uma economia de 20%. É pouco em termos de redução da retirada de água dos mananciais. Precisaria ser no mínimo 50%.
Em janeiro de 2014 houve um primeiro plano de contingência, que previa um plano de racionamento no sistema Cantareira. Esse primeiro plano simplesmente sumiu. Ele não está mais disponível. A proposta era que o Cantareira, que em janeiro de 2014 estava com 24% de reservação, sem contar o volume morto, já começasse a fazer um racionamento brando. Veja que esses 24% de reservação (sem contar o volume morto) equivaliam a 46% da capacidade total do sistema –e mesmo assim, já soou o alarme e se propôs o racionamento.
Hoje, o Cantareira está com um nível de reservação em 5,6%, já considerando o uso do segundo volume morto. Corremos o risco de ter de decretar agora um racionamento de cinco dias sem água.
Quem deve ser o responsável pela gestão da crise?
A questão das responsabilidades é essencial para estabelecer um plano de contingência. Qual é a grade de responsabilidades e atribuições? Quem tem de fazer o quê?
A Sabesp é uma companhia prestadora de serviço. E, como prestadora de serviço tem de ter constância, indicador, desempenho, eficiência, meta… A Sabesp não é a gestora da política. Não é ela quem deve decidir onde é melhor investir, quem vai ficar sem água. Quem tem que decidir isso é a Arsesp, a agência reguladora. A gente tem feito cobranças equivocadas em cima da Sabesp, quando a cobrança tem de ser em cima da regulação.
É muito fácil colocar a Sabesp na linha de tiro. E ninguém fala nada sobre as responsabilidades da Secretaria de Recursos Hídricos, da Arsesp, da Secretaria de Meio Ambiente, que dá licenças, como a de uso do volume morto. Alguém viu o licenciamento ambiental desse uso extremo do Cantareira? Quais foram as condicionantes, os compromissos de mitigação? Foi uma licença emergencial?
Não é só que a água não está mais atingindo suas margens normais. É que, por centenas de quilômetros, o solo ficará ressecado, com impactos substanciais sobre todo o meio ambiente em torno.
Construir soluções para a crise vai depender de um plano de contingência que não é um plano da Sabesp, é um plano do governo federal, estadual, prefeituras e com a sociedade. Vai ter que entrar defesa civil, vigilância sanitária, secretaria de segurança…
Como resolver a crise
O governo do Estado apostou alto que ia chover. E, na outra mão, ele veio com um conjunto de obras que conseguirão criar — daqui a cinco anos — mais 20 mil litros. A gente não precisa de mais 20 mil litros. A gente precisa consumir melhor a água que tem.
Daqui a cinco anos, eu terei feito a transposição de águas do rio Paraíba do Sul para cá, o Paraíba do Sul, aliás, que agora está com apenas 5% de água. Então, veja, eu faço uma megaobra para trazer água e, de repente, pode não haver água pra ser trazida para cá.
E se, em vez disso, houvesse a recuperação da represa Billings, que está aqui ao lado? Nela, cabe a mesma quantidade de água do que a Cantareira é capaz de produzir. Ela não produz a mesma quantidade, mas ela pode guardar. Ou seja, eu posso trazer de outros lugares a água para a Billings em quantidades menores; posso interligar algumas represas do Alto Tietê; ou mesmo pensar em pequenos reservatórios no topo da serra do Mar, que seria uma água de altíssima qualidade, e trazer para a Billings…
São várias idéias que nem chegaram a serem discutidas, a respeito de uma represa que está aqui, mais perto do que as alternativas de abastecimento colocadas na mesa. A Billings, como se sabe, é o destino do esgoto que aSabesp não consegue tratar, que é jogado no Tamanduateí, no Anhangabaú, no Pinheiros, no Tietê, em todos os rios que a gente colocou avenidas em cima.
Depois, tem a drenagem urbana que é esquizofrênica porque uma parte quem cuida é o Estado, outra são as prefeituras. Só aí haveria uma capacidade de geração de água de chuva que seria mais ou menos o equivalente à vazão do rio São Lourenço, 4 metros cúbicos por segundo. O novo sistema São Lourenço, que deve ficar pronto em 2017, custará R$ 2 bi só em obras, terá custo operacional de mais R$ 6 bi em cima. Trata-se de uma megaobra para trazer água lá de longe do rio Ribeira, sem pagar devidamente os encargos ambientais que serão gerados naquela região, sem que aquilo gere prosperidade naquela região.
Os ensinamentos da crise
Com a água acontece uma coisa curiosa: como cai do céu, é difícil acreditar que vá faltar. Acaba a água da torneira, mas está tudo alagado lá fora. Isso, imagino, gera uma confusão pra muita gente… Mas ao mesmo tempo gera um aumento de consciência. Essa água que está alagando as ruas, será que ela não poderia ser usada?
Essa água é própria para o consumo?, alguém poderia perguntar. Há controvérsias. Há pessoas filtrando e fazendo testes, dizendo que é melhor do que a água da Sabesp. Cada vez mais, eu acredito que, quanto mais a gente tornar as pessoas autônomas em relação a garantir o seu básico, mais a gente estará caminhando para um mundo sustentável. Ensinar a garantir o mínimo da sua água, o mínimo da sua comida, pode ser um caminho.
A gente está tendo falta de água, apagão de energia, enchentes. Todos esses problemas estão ligados à gestão da água. Todo esse processo é muito didático e deve induzir mudanças de atitude. Como continuar aceitando como normal descarregar a privada com água potável? O baixo nível dos reservatórios está mostrando o baixo nível das nossas políticas em relação a isso. Se não for didático, então a única saída é o êxodo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário