Cheiros e sabores da infância e o menino de Alepo
Escrito por Cristiane T. Pomeranz (*)
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A inconformidade que sentimos ao ver tal fotografia, acompanhará o caminho do menino. A dor que ele sentiu e viveu com tamanha indagação sobre o viver estará gravado em sua memória.
O velho Omran, se chegar a existir, terá que ter tido forças para se reconstruir como sujeito em meio aos destroços, para assim, conseguir viver sua velhice sem amarguras.
Viver é emocionar-se. É ser afetado pela vida e por tudo que ela nos oferece.
Ao longo do caminho construímos relações de afeto e nos deixamos afetar por sensações, repletas de alegrias e tristezas registradas por nosso cérebro e transformadas em memórias evocadas e resgatadas sempre que associações são feitas em cima de fatos que nos remetem aquilo que já foi sentido.
Tive a alegria de viver uma infância rodeada de amor e de brincadeiras. Nascida em cidade grande, meus pais encontraram uma maneira de inserir o campo no contexto de minha vida. Cresci brincando numa chácara que ficava na cidade do meu avô, pertinho de São Paulo e que serviu como refúgio da família para os sábados e domingos.
Tudo era simples, despojado e eu amava essa maneira de existir, com pés no chão e ralados nos joelhos. Em meio aos cachorros, terra e plantas passava meus fins de semana.
Ao final do dia, exausta de tanto brincar, me aprontava para sossegar um pouco com um banho quente e demorado. Naquele tempo não imaginávamos esse problema todo de escassez de água. Após o banho e, antes de vestir o pijama, banhava-me de “Seiva de Alfazema” e com isso sentia no seu cheiro a certeza de ter vivido um dia glorioso.
As festas da família eram sempre com comidas gostosas feitas em um tempero delicioso. Comemorávamos a vida, muitas vezes com feijoada feita no fogão a lenha. O cozimento das carnes e do feijão era demorado e a chácara se enchia de um cheiro memorável. Não dá para esquecer.
O sabor da comida, das verduras tiradas da horta e até da formiga iça, uma espécie de formiga tanajura que, pasmem, comíamos, continuam registrados na minha memória. Confesso que isso tudo me fez desenvolver uma percepção da vida cheia de valores, que ao meu ver, me fizeram ser quem sou.
Se colocarem um perfume francês e uma alfazema e pedirem para dizer qual cheiro prefiro, a resposta é evidente já que dentro do vidro de Alfazema existe, além do cheiro, uma história e uma infância. E é minha história repleta de olfatos e sabores.
Recentemente soube que meu irmão tem a mesma loucura por essa lavanda. Incrível a felicidade despertada nele ao recebê-la de presente. Nossa infância estava de volta, engarrafada, rotulada e vendida por um pequeno preço e em qualquer farmácia.
Mas não posso falar nessas memórias olfativas sem lembrar da morte de meu cachorro. Depois de atropelado, ele morreu em meus braços de criança e do seu corpo, exalava um cheiro muito forte que provavelmente vinha da hemorragia interna que ele estava tendo. Esse cheiro de morte anunciada eu jamais esqueci.
Hoje, ao olhar o jornal, vejo a fotografia do menino de Alepo. A Guerra Síria é a prova do absurdo que a maldade humana faz no mundo.
O menino de nome Omran, fotografado pelo fotógrafo Mahmud Rslan, minutos depois de escapar de um bombardeio contra sua casa em Alepo, é o retrato da desumanidade existente no mundo.
Sentado no banco da ambulância seu olhar era perdido e ele estava mudo e estarrecido por essa situação de aberração contra a inocência de uma criança.
Sujo pelos escombros e com o rosto ensanguentado, o menino passa sua pequena mão no rosto na tentativa de limpar algo que escorre e o incomoda. Ao olhar para sua mãozinha, o sangue é percebido e a cena, que nós, de nossas casas cheirosas e confortáveis pudemos ver, era de um menino tentando compreender o inaceitável e o incompreensível.
O cheiro de sangue, das poeiras e dos escombros estarão registrados na memória de Omran e se ele tiver a oportunidade de crescer e envelhecer, eu, daqui da minha casa quentinha, vou estar torcendo para que o mundo o favoreça e o ajude a resignificar sua vida e todo esse absurdo.
A inconformidade que sentimos ao ver tal fotografia, acompanhará o caminho do menino. A dor que ele sentiu e viveu com tamanha indagação sobre o viver estará gravado em sua memória.
O velho Omran, se chegar a existir, terá que ter tido forças para se reconstruir como sujeito em meio aos destroços, para assim, conseguir viver sua velhice sem amarguras.
O jornal de hoje foi perturbador. E está difícil lidar com essa situação de quase conformismo já que não encontro meios de dizer: Parem essa guerra! Em nome de Omran e de todos inocentes estraçalhados! Parem com esse absurdo! Favoreçam o viver! Favoreçam o envelhecer! Deixem as crianças da Síria crescerem e envelhecerem sem o horror da burrice de uma guerra!
Meu olhar também está estarrecido! Eu toda me sinto congelada e de mãos amarradas.
Olhei a foto no jornal, do meu rosto algo também escorre. O sangue do rosto do menino transformado em lágrimas em meu rosto. Sinto muito menino. Eu queria mesmo era poder modificar a sua história e te dar um outro momento, talvez com o cheiro da Alfazema permeando sua infância.
Queria olhar para você e te falar de arte, de afeto e de um mundo de paz. Queria muito. Mas o mundo é injusto e as pessoas são feias. Pena você ter descoberto isso tão cedo e de uma maneira tão cruel.
Mas sabe, menino: em meio a tanto absurdo existem pessoas boas e doces.
O mundo é feio pois algumas pessoas muito ruins o fazem assim. Mas nem todos são dessa maneira. Juro a você.
Os campos de alfazema existem e eu vou torcer para que você e todos que sofrem com essa guerra, possam descobri-los e explorá-los em seus cheiros e cores.
A vida é também feita de escombros, mas ela não é só isso.
Acredite em mim e se deixarem e a paz permitir, procure seus campos floridos.
Cure suas feridas. Estanque esse sangue que jorra no rosto e no coração.
Sinto muito Omran, sinto muito...
(*)Cristiane T. Pomeranz é arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte e mestranda em Gerontologia Social PUC-SP. Email: crispomeranz@gmail.com
Fonte :http://www.portaldoenvelhecimento.com/ideias/item/4164-cheiros-e-sabores-da-inf%C3%A2ncia-e-o-menino-de-alepo
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