Invertendo o sinal
Marta Gil (*)
Viagens
espaciais, corridas de automóvel e até mesmo guerras frequentemente têm
desdobramentos considerados benéficos para a sociedade, de novos medicamentos a
pneus mais resistentes ou combustíveis de maior rendimento.
Esses “subprodutos”
nem sempre justificam a realização dos eventos – especialmente as guerras – mas
contribuem para mitigar (para usar um verbo da moda) os fantásticos custos que
demandam. Eles trazem ganhos para um número de pessoas bem maior do que os
envolvidos (ou atingidos) de forma direta.
Há muito
me pergunto: E na área da deficiência, será que isso também acontece? O que foi
desenvolvido nessa área que trouxe benefícios para a coletividade?
Não me
ocorria nenhum exemplo marcante, até ler o excelente artigo “Acessibilidade
para a segurança de todas as pessoas” ,
de Izabel Maior e sua versão resumida, de igual excelência, escrita por ela e
Andrei Bastos, “Mobilidade vital” . O
artigo foi escrito – me atrevo a dizer “inspirado” pela tragédia ocorrida na cidade
de Santa Maria, RS, na madrugada do dia 27 de janeiro, quando 241 jovens
perderam suas vidas de forma dramática e até então inimaginável, num país onde
consideramos que Deus é brasileiro – como se isso nos eximisse de qualquer
responsabilidade...
O artigo
fala do Decreto 5.296/2004, que estabelece normas detalhadas sobre a
acessibilidade, entendida em sentido amplo. Embora esteja em vigor há 8 anos, é
pouco conhecido por arquitetos, engenheiros, seus respectivos Conselhos
Profissionais, por órgãos de fiscalização de obras, profissionais da área de
segurança e prevenção de acidentes e por cursos de formação técnica e
universitária.
Suas
recomendações em geral não são cumpridas na construção ou na reforma e nem são
objeto de fiscalização, como recomendado.
A ABNT –
Associação Brasileira de Normas Técnicas, por sua vez, tem uma norma específica
sobre acessibilidade, a 9050, que é periodicamente revista, atualizada e
ampliada, com a participação de diversos segmentos da sociedade civil,
incluindo pessoas com deficiência.
Ou seja:
o marco legal e conceitual existe, é de qualidade, mas lamentavelmente não é
respeitado. No caso da boate Kiss, como Izabel Maior e Andrei Bastos sublinham,
nem uma destas normas foi cumprida. O resultado é o que sabemos.
Se a lei
tivesse sido obedecida, muito provavelmente a dimensão da tragédia teria sido
menor – embora não menos triste. Como o artigo “Mobilidade vital” sintetiza: “Onde
passa um cadeirante, passa qualquer um”.
Se a lei
tivesse sido obedecida, haveria sinalização de diversas formas, passagens
largas e desimpedidas – até porque para a aprovação
ou licenciamento ou emissão de certificado de conclusão de projeto
arquitetônico ou urbanístico deverá ser atestado o atendimento às regras de
acessibilidade previstas nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT, na
legislação específica e neste Decreto (capítulo
IV, Seção 1, art. 11,
§
2.o..
Em minha
opinião, esse conjunto de normas e procedimentos, com base legal, que garantem
acessibilidade e segurança PARA TODOS é
uma significativa contribuição do segmento das pessoas com deficiência para a
sociedade.
Construir
esse corpo conceitual e jurídico levou tempo, suor e lágrimas. Ele veio do
enfrentamento diário dos 1001 obstáculos que pessoas com todos os tipos de
deficiência enfrentaram (e ainda enfrentam). Representa a somatória de inúmeros
esbarrões em galhos de árvore, orelhões, equipamentos urbanos colocados
aleatoriamente e sem sinalização de alerta, tombos e atropelamentos, porque
calçadas nem sempre podem ser utilizadas por cadeirantes. Isso sem esquecer o
transporte público que não é exatamente “público” porque não atende a todos, a
ausência de infraestrutura acessível em aeroportos, cais, estações rodoviárias
e por aí vai.
Depois
de compilar essas vivências e ordená-las sob forma de projetos de leis, de
decretos, Normas Técnicas a batalha seguinte foi levá-las ao Poder Legislativo
e convencê-los da necessidade de irem a votação.
Ganho o
segundo round, com a aprovação de
leis e decretos, contamos com o importantíssimo reforço da CDPD – Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada (2008) e promulgada
(2009) pelo Brasil com a equivalência e força de artigo constitucional.
Agora é
hora de divulgar intensamente estas ferramentas, até mesmo para honrar a memória
dos jovens que perderam sua vida em Santa Maria, para que nunca mais nada
semelhante aconteça, nem aqui e nem em outro país. Já temos “régua e compasso”,
como diz a canção.
E a
inversão do sinal, lá do título?
Bem,
durante séculos a sociedade se acostumou a ver as pessoas com deficiência como
seres dignos de piedade, que precisavam ser cuidados, por toda a sua vida.
Quantos bingos, jantares beneficentes, rifas foram feitos em seu benefício... e
com a melhor das intenções, sem dúvida nenhuma. As pessoas com deficiência,
vistas como frágeis, incapazes, desamparadas, demandavam atenção e recursos
ininterruptamente.
A partir
da década de 90 do século 20 essa concepção passa por uma mudança radical, com o
paradigma da Inclusão, que traz os conceitos de Cidadania, Acessibilidade, Vida
Independente. Recursos de Tecnologia Assistiva possibilitam sua participação na
escola, no trabalho, na vida social. Pessoas com deficiência começam a ser
vistas no dia-a-dia.
A
Convenção insere o tema da Deficiência no patamar dos Direitos Humanos,
apontando a direção a seguir e garantindo conquistas. O tempo do
assistencialismo – que foi importante para garantir sua sobrevivência – começa
a ficar para trás.
De
incapazes, as pessoas com deficiência passam a ocupar seu espaço de indivíduos
com direitos – e que têm muitas e muitas contribuições a trazer para a
sociedade, como o conceito de Acessibilidade e seu corolário, o Desenho
Universal, definido como:
Uma
forma de conceber produtos, meios de comunicação e ambientes para serem
utilizados por todas as pessoas, o maior tempo possível, sem a necessidade de
adaptação, beneficiando pessoas de todas as idades e capacidades
Depois
de séculos, o sinal finalmente começa a ser invertido: de quem só “tinha a
receber e humildemente agradecer” para quem tem o que partilhar, ombro a ombro
com os demais, para a construção de uma sociedade solidária, com segurança e
dignidade para todos.
(*)
Marta Gil - consultora na área da Inclusão de
Pessoas com Deficiência, socióloga, Coordenadora Executiva do Amankay Instituto
de Estudos e Pesquisas, Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais, colaboradora
do Planeta Educação e colunista da Revista
Reação.
Autora do livro “Caminhos da Inclusão – a
trajetória da formação profissional de pessoas com deficiência no SENAI-SP”
(Editora SENAI, 2012), organizou livros; tem artigos publicados; participa de
eventos no Brasil e no exterior. Áreas de competência: Inclusão na Educação e
no Trabalho.