Por Liliane Garcez e Luiz Henrique de Paula Conceição
Introdução
O modo pelo qual são organizadas políticas públicas ao longo da
história pode ser definido como respostas ético-políticas às demandas
sociais nos diferentes contextos. Suas prioridades são oriundas da
sociedade que se organiza continuamente no intuito de que seus pleitos
ganhem espaço nas agendas governamentais, uma vez que, para sua
efetivação são necessários investimentos sociais, políticos e
econômicos. Conservar e transformar são, pois, ações que compõe o
movimento das políticas públicas. Direitos humanos são direitos
positivos, históricos e culturais que encontram fundamento e conteúdo
nas relações sociais materiais presentes em cada momento histórico. Ao
situar Educação e o Trabalho como direitos humanos admite-se sua
interdependência e importância estratégica para o desenvolvimento
sustentável e inclusivo da sociedade, o que implica no estabelecimento
de políticas públicas que estabeleçam ações integradas envolvendo a
transmissão de conhecimentos e valores e a formação para o trabalho
2, tal como constante na Constituição Federal.
Educação e Trabalho e as pessoas com deficiência
As políticas públicas, ao estabelecer suas ações e metas, têm como
diretriz atuar no combate a qualquer desigualdade, exclusão ou restrição
feita com o propósito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento,
desfrute ou exercício dos direitos, em igualdade de condições,
valorizando e estimulando o protagonismo e as escolhas de cada uma das
pessoas. Reconhecimento e participação sustentam a noção de políticas
públicas na perspectiva da inclusão social, pois pertencer a uma
comunidade e estar incluído socialmente é direito de todas as pessoas.
Assim, o acesso e permanência à educação e ao trabalho é direito de
tod@s, sem discriminação, em igualdade de oportunidades.
Em relação às pessoas com deficiência, é necessário estabelecer
medidas apropriadas para assegurar apoio e não permitir que haja
discriminação baseada nas condições físicas, intelectuais, mentais ou
sensoriais e, muito menos, afastamento compulsório de suas comunidades.
Nesse aspecto, alterar as leis é a parte imprescindível do processo de
provocação e sustentação das mudanças, mas não pode ser entendido como
suficiente ou um fim em si mesmo. Como afirma Norberto Bobbio, as leis
por vezes afirmam os direitos que se gostaria de ter.
Nesse sentido, alterar o tempo de oferta de ensino compulsório na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) é condição para
diminuir as desigualdades educacionais. Isoladamente, porém, não é
suficiente para que o acesso à educação seja pleno para todas as
crianças e adolescentes brasileir@s. Para assegurar um sistema
educacional inclusivo de acordo com a meta de inclusão plena, tal como
disposto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(ONU, 2006)
3
em seu artigo 24 que se refere especificamente à educação, é
imprescindível que sejam efetivadas medidas de apoio individualizadas em
ambientes catalisadores do desenvolvimento acadêmico e social.
Em termos do direito ao trabalho, dado que a inserção laboral integra
o conjunto de direitos previstos na Constituição Brasileira, tem-se a
promulgação da Lei de Cotas (Lei 8213/1991) que estabelece o percentual
de empregados com deficiência que a empresa com mais de cem empregados
tem de manter nos seus postos de trabalho (de 2 a 5 % dependendo do
tamanho da empresa) e o Decreto nº 3.048/1999, republicado em
12/05/1999, que regulamenta a Lei de Cotas, possibilitando um cenário de
inclusão socioeconômica promissor.
O artigo 27 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (ONU, 2006) é relativo ao trabalho e emprego. Ele afirma o
direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha
ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja
aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência.
Não obstante, as empresas brasileiras relatam dificuldade em cumprir a
referida legislação, principalmente por conta da falta de qualificação
d@s trabalhador@s. Sem entrar no mérito da questão, está posta a
necessidade de aprimorar, criar, ampliar, efetivar políticas públicas
voltadas à qualificação cujo objetivo para equiparar oportunidades de
trabalho, contribuindo para aumentar a empregabilidade desse grupo que
tem sido historicamente invisível. Pode-se notar que algumas políticas
que vem sendo implementadas pelos Ministérios do Trabalho e Emprego
(MTE) e da Educação (MEC) tem esse foco, por exemplo, ao estabelecerem
diretrizes de ação para aumento da participação das pessoas com
deficiência nos cursos ofertados em parceria com estados, municípios e a
União visam ampliar o acesso dessa parcela da população ao mercado de
trabalho.
A hora de sair das caixinhas: a importância das políticas públicas intersetoriais
As demandas sociais por educação e trabalho na perspectiva da
inclusão social instigam os gestores públicos a reorganizarem o próprio
formato das políticas públicas, quer em termos de concepção, quer em
termos de execução. O desafio colocado frente à organização tradicional
do governo e das instituições sociais que, de forma geral, têm
privilegiado o trabalho ‘em caixinhas’ não é mais suficiente. A
interdependência dos direitos humanos demanda articulação intersetorial
e, consequentemente, investimento de estrutura institucional baseada no
diálogo rotineiro e sistemático entre as diversas pastas que compõe o
poder executivo, induzindo a construção e o uso de “ferramentas para a
mudança”, em direção a um modelo de crescimento sustentável ambiental,
econômica e socialmente para, de fato, responder às questões no grau de
especialização e complexidade em que se apresentam.
Algumas ações que estão organizadas intersetorialmente já apresentam
indicadores muito interessantes. O Programa BPC na Escola é um desses
exemplos. Ação interministerial que envolve o Ministério da Educação
(MEC), o Ministério da Saúde (MS), o Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate a Fome (MDS) e a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e
seus correlatos em estados e municípios está voltada a crianças e
adolescentes com deficiência (0 a 18 anos) que recebem o Benefício de
Prestação Continuada – BPC. Teve início em 2007, quando foi realizado o
primeiro levantamento da situação escolar de crianças e adolescentes que
recebiam o BPC por meio do qual se constatou que aproximadamente 70%
destas estavam fora da escola. Diante desses dados, foram realizadas
buscas ativas a esses beneficiários, cerca de 219 mil visitas
domiciliares, para diagnosticar as razões dessa exclusão. O resultado é
que, atualmente, a porcentagem de crianças e adolescentes com
deficiência beneficiários do BPC que estão na escola aumentou para
68,71%. Ou seja, houve uma inversão da curva!
No que se refere a inserção no mercado de trabalho as estatísticas
mostram que muitas pessoas em idade economicamente ativa não possuem
qualificação profissional e/ou não terminaram seu processo de
escolarização básica. Novamente, por meio dos dados do Benefício de
Prestação Continuada da Assistência Social (BPC) as pessoas com
deficiência que se encontravam em situação considerada de “incapacidade
para a vida independente e para o trabalho”, em virtude da falta de
condições para o enfrentamento das inúmeras barreiras existentes e da
insuficiência de políticas públicas de apoio aos processos de
habilitação, reabilitação, educação e inclusão social foram
identificadas como público prioritário. Desde então, foram promovidas
muitas alterações na legislação referente à concessão e manutenção do
BPC. Uma dessas mudanças assegura o retorno garantido do recebimento do
BPC ao beneficiário que teve o beneficio suspenso mediante entrada no
mercado de trabalho e que, posteriormente, perdeu o emprego. (Lei nº
12.470/2011 e Decreto nº 7.617/2011). Neste caso, a pessoa pode voltar a
receber o BPC sem a realização de perícia médica ou reavaliação da
deficiência, respeitado o período de dois anos. Nos mesmos moldes do
Programa BPC Escola, no ano de 2012, foi criado o Programa BPC Trabalho
para atender prioritariamente beneficiários com idade entre 16 e 45
anos, que têm interesse em trabalhar e encontram dificuldades para
qualificação e inserção profissional. Suas estratégias envolvem
sensibilização, avaliação do interesse e das necessidades para a
qualificação profissional e o trabalho.
Cabe ressaltar ainda o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego (Pronatec), que tem como objetivo principal expandir e
democratizar a Educação Profissional e Tecnológica no país. Uma das
ações do programa é a Bolsa-Formação, que oferece Cursos Técnicos e de
Formação Inicial e Continuada (FIC), também conhecidos como cursos de
qualificação profissional. Esses cursos são presenciais e serão
realizados pela Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica, por escolas estaduais e por unidades de serviços nacionais
de aprendizagem como o SENAC, o SENAI e o SENAR. As secretarias
municipais e/ou estaduais de educação, assistência social, o CRAS
(Centro de Referência de Assistência Social) e o SINE (Sistema Nacional
de Emprego) são responsáveis pela mobilização e divulgação dos cursos
nas comunidades para viabilizar o preenchimento total das vagas,
forjando seu caráter intersetorial. É importante registrar que essas
ações, entre várias outras, integram o Plano Nacional dos Direitos das
Pessoas com Deficiência – Viver sem Limite lançado no final de 2011.
Algumas considerações
Ao definir-se inclusão não como o reverso da exclusão e sim como o
processo de modificação da organização social para ampliar a capacidade
de respostas eficazes a todas e a cada pessoa, opta-se pela criação de
alternativas para a quebra das barreiras historicamente construídas.
Em relação às pessoas com deficiência, à luz da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) e dos fundamentos dos
direitos humanos, inclusão conjuga igualdade e diferença como valores
indissociáveis, pois, ao valorizar as diferenças humanas, denuncia a
discriminação e a invisibilidade, ‘provocando’ a efetivação de ações que
objetivem a retirada de barreiras que impedem a participação plena
desse grupo por fomentar a promoção da acessibilidade a tod@s, e não
apenas de parcelas da população. As estratégias estabelecidas estão
baseadas na noção de ‘isso e aquilo’ em substituição à ideia de ‘ou isso
ou aquilo’, pois, quando se relaciona aos direitos fundamentais o ‘ou’,
por implicar em escolha, exclui, separa, encaminha, desresponsabiliza
parcialmente.
Assim, ao apreender-se inclusão como processo de modificação da
organização social para torná-la responsiva e adequada a tod@ e cada
brasileir@, amplia-se o espectro de ação para diferentes propostas a
serem continuamente resignificadas, no que diz respeito ao
desenvolvimento sustentável e inclusivo, cuja responsabilidade é
compartilhada entre tod@s. Esta perspectiva impõe a necessidade de nos
colocarmos em movimento, de rever cotidianamente posturas, criar e
recriar instrumentos para romper com as barreiras que se estabeleceram e
se estabelecem, e, valorizar, sobretudo, as diferenças para que todo@s,
sem exceção, sejam membros importantes e responsáveis que têm o direito
de realizarem seus projetos na comunidade em que vivem. Sem vírgulas ou
“desde que”.
Notas
1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (grifos nossos)
2
Essa expressão encontra-se no item IV do artigo 214 da Constituição
brasileira que trata do plano nacional de educação. No primeiro Plano
Nacional de Educação após a promulgação da Constituição de 1988, lei no.
10.172/2001 tal expressão fica restrita ao capítulo referente à
educação tecnológica.
3
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi
promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 6 de dezembro
de 2006. Diferentemente das Declarações Internacionais anteriores, no
dia 09 de julho de 2008, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência foi ratificada com quórum qualificado, ou seja, aprovada por
3/5 do Congresso Nacional, tornando-se o primeiro tratado internacional
com status constitucional da história do Brasil – o Decreto Legislativo
186/08. Além disso, no ano seguinte, o Decreto Executivo 6949/09 de
mesmo teor, foi assinado pelo Presidente da República, para não deixar
‘brechas’ legais, uma vez que esse dispositivo constitucional havia sido
utilizado pela primeira vez. Pode-se afirmar que tanto a elaboração da
Convenção pela Organização das Nações Unidas, bem como o processo de
ratificação no Brasil e nos demais países foram frutos dos movimentos
sociais que pressionaram os governos com suas demandas baseadas nos
direitos humanos e conseguiram o estabelecimento desses marcos legais.
Sobre os autores
Liliane Garcez é mestre em Educação pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo – USP, Licenciada em Psicologia pela Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo – USP, Psicóloga pelo
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP,
Administradora Pública pela Escola de Administração da Fundação Getúlio
Vargas – EAESP/FGV
Luiz Henrique de Paula Conceição é graduado em Psicologia (USP) e
mestrando em Psicologia (USP). Atua no Instituto Rodrigo Mendes como
pesquisador.