Equipamento mapeia o ambiente e indica pontos de referência por meio do som e de vibrações emitidas por um cinto e uma luva. Ferramenta é testada por alunos do Instituto Benjamin Constant.
A falta de recursos de acessibilidade ainda impede a cidadania de pessoas com deficiência no Brasil. Em diversos setores e locais, públicos e privados, mesmo projetos recentes, modernos, atualizados, desconsideram o cenário universal, no qual tudo existe para todos, e desobedecem a Lei Brasileira de Inclusão, em vigor desde janeiro deste ano.
No caso de pessoas cegas ou com deficiência visual, esse bloqueio aparece na ausência de pisos táteis, audiodescrições, textos em braile e outros recursos que garantem o pleno domínio do ambiente. Além de impedir a inclusão real, essa exclusão representa um perigo, mesmo para quem já conquistou autonomia e independência.
Felizmente, pesquisadores atuam cada vez mais pela inclusão e têm apresentado ferramentas que ampliam de fato a acessibilidade. É o caso de Wallace Ugulino, aluno do Departamento de Informática do Centro Técnico Científico da PUC-Rio. Ele criou, em sua tese de doutorado, óculos para pessoas cegas ou com deficiência visual que fazem o mapeamento e a descrição do local e dos objetos presentes. A orientação é do professor Hugo Fuks.
Classificado como ‘wearable technology’ (tecnologia vestível), o equipamento transmite dados sobre locais mapeados, indica pontos de referência e facilita o reconhecimento de ambientes ao fornecer informações por um alto-falante e também por vibrações emitidas por um cinto e uma luva.
“A área de tecnologia assistiva ainda engatinha no Brasil. Precisamos investir mais no mobiliário urbano. Falta uma visão de que esse investimento não afeta somente cegos ou cadeirantes. Esses investimentos trazem mais segurança e conforto para todos e beneficiam também o turismo na cidade. Se a cidade pudesse ‘conversar’ com o wearable (equipamento) do indivíduo, nós poderíamos não só apoiar a mobilidade dos indivíduos com deficiência, mas também teríamos um conjunto de novas oportunidades de negócios: turismo, mobilidade urbana, produtividade, publicidade, etc”, diz o pesquisador.
A ferramenta está em fase de testes, feitos por alunos do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. “Na fase inicial da pesquisa, a programação foi restrita a ambientes internos, o que possibilitou testar a funcionalidade dos dispositivos com mais segurança para os voluntários. A experiência no instituto consistiu em propor duas tarefas aos estudantes, que deveriam indicar em qual área do prédio estavam localizados o museu e a estátua de Dom Pedro II. Ao caminharem pelos corredores, as vibrações emitidas pelos cintos e luvas indicavam que os usuários estavam passando por pontos de referência e os óculos forneciam informações verbalizadas sobre o ponto de referência encontrado, seja ela uma porta ou um objeto no caminho”, explica Ugulino.
Para o pesquisador, desenvolver tecnologias assistivas exige preocupação com os chamados fatores humanos. “Caminhar por ruas movimentadas e locais barulhentos é uma situação comum para milhões de brasileiros, mas também é responsável pelo medo e confusão de muitas pessoas com deficiência visual. Com a perda da visão, outros sentidos se tornam muito mais sensíveis porque os cegos precisam prestar muita atenção aos sons, à textura do solo e aos cheiros. Tecnologias projetadas sem levar em conta os fatores humanos interferem nessa sensibilidade, gerando uma sobrecarga cognitiva, um fenômeno conhecido como ‘masking’, um dos temas investigados nessa pesquisa”, diz.
Próxima fase – Ugulino se dedica agora ao projeto ‘Third Eye’, uma continuação de sua tese. De acordo com o pesquisador, a meta é permitir que a pessoa seja capaz de construir mapas mentais e possa aprender sobre o local onde vive, estuda ou trabalha. “A ideia no momento não é oferecer rotas determinadas aos usuários, mas permitir que, com as informações gerais sobre o local, a pessoa possa escolher o melhor caminho sozinha”, diz.
Com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da White Martins, a próxima etapa da pesquisa inclui aplicativos de localização para celular e câmeras acopladas aos óculos do projeto inicial. “Os aplicativos nos quais estamos trabalhando conhecem a preferência e as limitações de cada usuário, mas não serão restritos a pesoas com deficiência visual. Serão adicionadas informações sobre a cidade, ruas e locais turísticos, de forma que não se torne um sistema segmentado para uma categoria de indivíduos, mas que apoie a todos: ciclistas, turistas, cegos, cadeirantes, etc. É o que chamamos de Design Universal”, afirma Ugulino.
No aplicativo, os obstáculos serão mapeados e os pontos de referência estarão disponíveis para que o usuário fique seguro para realizar tarefas em ambientes externos. Segundo Ugulino, a câmera também pode auxiliar no processo, permitindo a identificação de placas e informações do trajeto. De acordo com o pesquisador, a tecnologia deve aumentar o intelecto e o sentido, mas em alguns casos, o efeito apresenta-se de forma contrária, levando a um excesso de informações.
“Cada ambiente tem suas particularidades e vai exigir diferentes comportamentos. Por exemplo, para guiar pessoas com deficiência visual em ruas não é aconselhável usar avisos sonoros complexos (como textos longos ou tons indicativos difíceis de serem compreendidos), pois este será mais um fator de preocupação para o usuário, que já precisa lidar com tantos barulhos ouvidos diariamente. Os aparelhos desenvolvidos e testados no Instituto Benjamin Constant apresentaram resultados positivos entre os voluntários e não registraram problemas quanto ao excesso de informações”, diz Ugulino.
Abaixo, uma entrevista com Wallace Ugulino e com o professor Hugo Fuks orientador do Departamento de Informática do Centro Técnico Científico da PUC-Rio (CTC/PUC-Rio).
Vencer Limites – Você teve algum tipo de envolvimento com a deficiência visual antes do projeto? Tem amigos ou parentes cegos? O que motivou a criação de um dispositivo especifico para pessoas com deficiência visual? O que você aprendeu sobre esse universo ao trabalhar nesse projeto?
Wallace Ugulino – Eu tenho parentes cegos, mas são distantes e não convivo diariamente. O meu envolvimento com o tema foi inicialmente pelo desafio de produzir tecnologia na área. Contudo, eu me encantei mesmo depois de conviver com os professores de mobilidade e alunos reabilitandos do Instituto Benjamin Constant na fase observacional da pesquisa. Eu cheguei a fazer aulas de mobilidade com a bengala (vendado) com a professora Vanessa Zardini (IBC). Naquele momento, ficou claro para mim quão difíceis são para os cegos algumas atividades triviais para nós (videntes), como é o caso de ‘andar em linha reta’. Isso é trivial para os videntes, mas os cegos normalmente têm dificuldade com isso. Essas lições sobre propriocepção e mobilidade sem a visão mudaram minha vida e foram muito inspiradoras para o meu trabalho de prototipação. Eu aprendi o quão importante é, por exemplo, produzir tecnologia que demande menos atenção do usuário, aprendi que isso pode diminuir o risco de acidentes. Eu me senti motivado a desenvolver essa tese quando entendi a relevância que esse estudo tem para essa população em particular e as lições que isso nos traz sobre como produzir melhores artefatos computacionais. Atualmente, as lições que aprendi sobre a atenção demandada pela tecnologia estão me ajudando a projetar tecnologia não só para cegos, mas também para ciclistas urbanos, condutores de veículos automotores, e outras áreas temáticas na qual a atenção do usuário é fator crítico.
Hugo Fuks – Casos extremos iluminam as necessidades de todos. O que facilita a vida de um cego, algo como uma calçada decente, artigo escasso no Brasil, ajuda o ir e vir de todos os pedestres.
Vencer Limites – Qual a sua avaliação sobre a tecnologia assistiva no Brasil? Quais bons exemplos nacionais podem ser citados? O que outros países têm para nos ensinar?
Wallace Ugulino – A área ainda engatinha no Brasil. Precisamos investir mais no mobiliário urbano. Falta uma visão de que esse investimento não afeta somente cegos ou cadeirantes. Esses investimentos trazem mais segurança e conforto para todos e beneficiam também o turismo na cidade. Se a cidade pudesse ‘conversar’ com o wearable do indivíduo, nós poderíamos não só apoiar a mobilidade dos indivíduos com deficiência, mas também teríamos um conjunto de novas oportunidades de negócios: turismo, mobilidade urbana, produtividade, publicidade, etc.
Hugo Fuks – Engatinhando. Voltando a falar das calçadas, antes do projeto Rio-Cidade, na década de 1990, não me lembro de haver rampas decentes nas ruas para os cadeirantes. A importância de calçadas decentes. Aliás, a qualidade dos nossos governantes pode ser avaliada pelas calçadas e ruas da cidade. Não há melhor modo de compartilhar a riqueza de uma sociedade com o seu povo.
Vencer Limites – Qual a sua avaliação sobre acessibilidade e inclusão, de forma geral, no Brasil?
Wallace Ugulino – Eu acredito que avançamos um bocado na última década. Programas de inclusão são os primeiros a sofrer corte quando há uma restrição orçamentária, seja na administração pública ou privada. Parece que não há um entendimento de que a inclusão beneficia negócios, de que ela apoia a cidadania, e de que nos leva a avançar em qualidade como sociedade. Todos ganham com a inclusão: há um mercado inexplorado, com potencial de gerar lucros e arrecadação. O potencial produtivo desses cidadãos não é aproveitado por causa de espaços públicos e privados que não são acessíveis.
Hugo Fuks – Há de fato um interesse em melhorar a vida das pessoas excluídas por alguma excepcionalidade. Mas a prioridade ainda é muito baixa.
Fonte: Estadão
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terça-feira, 24 de maio de 2016
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